Série “O direito a dizer NÃO” #4: as leis de proteção à água que podem mudar a ordem mundial

No quarto episódio da série, a história de Belisário, um distrito dedicado ao Turismo e à Agricultura Familiar que desnudou os empreendimentos predatórios

Entidades empresariais e Ministério Público  alegam inconstitucionalidade de lei aprovada em Muriaé

Nos capítulos anteriores da série “Territórios livres: O direito a dizer NÃO aos empreendimentos predatórios” conhecemos o que são áreas livres, a história do desenvolvimento da agroecologia no sudoeste de Minas Gerais e como o município de Visconde de Rio Branco protegeu seus mananciais através da aprovação de uma lei que transformou duas serras em Patrimônio Hídrico. Agora, nós, do Lei.A, dividimos com você a história de um pequeno povoado da zona rural da cidade de Muriaé, chamado Belisário. Nele, seus cerca de 2.500 habitantes lutaram pela criação de um sistema jurídico de proteção de suas fontes de água, composto por uma legislação avançada e um plano diretor consistente. Juntos, eles impedem a chegada de empreendimentos predatórios, como a extração mineral pelo modelo até então adotado no Brasil. 

O exemplo de vanguarda de Belisário tende a se tornar referência mundial em legislação de defesa dos recursos naturais do planeta. A aprovação dessas leis parecia indicar a consolidação de um caminho promissor para a proteção dos recursos ambientais e manutenção do modo de vida dos agricultores familiares de toda a região da Zona da Mata mineira. Porém, da mesma forma como mostra os caminhos e oferece alternativas de geração de empregos e renda, tem causado a reação contrária do setor da mineração e de sindicatos classistas dos megaempreendimentos.


#conheça

Belisário: um povoado em defesa de toda a Zona da Mata

Aos pés do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro e a 33 quilômetros do núcleo urbano da cidade de Muriaé está o distrito de Belisário. Nele, há dezenas de décadas, seus moradores optaram por terem o Turismo e a Agricultura Familiar (com base no sistema da Agroecologia) como as atividades econômicas geradoras de renda. Porém, o povoado e seu entorno estão localizados sobre a segunda maior reserva de bauxita do país.

O avanço da extração de bauxita nas cidades do entorno de Belisário foi motivação para a sua comunidade se mobilizar previamente. Um dos primeiros passos foi documentar oficialmente o tamanho da maior riqueza do distrito, que estaria em perigo: a água. Uma pesquisa foi feita e por meio dela, foram catalogadas 2.000 nascentes no território. 

Mas sendo o solo de Belisário rico em bauxita, não bastava apenas ficar no campo da ciência e da ideologia, era preciso se organizar. Até porque, no que dizia respeito à legislação, ela garante à mineradora Companhia Brasileira de Alumínio os direitos minerários concedidos atualmente pela Agência Nacional de Mineração (ANM).


A velha política corporativa do “não é nada demais”

Há alguns anos, a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), uma empresa do Grupo Votorantim, aguarda apenas a licença ambiental (Licença de Operação) para iniciar a mineração em Belisário. Em sua estratégia para entrar no território, já que precisa ter aprovação das licenças em conselhos regionais, ela patrocinava eventos locais. Durante eles ou por meio de ações de comunicação corporativa, a empresa tenta passar a sua afirmativa de que a mineração de bauxita é extremamente simples e altamente sustentável pelas características da região e pelo nível de tecnologia adotado, com a lavra sendo rápida e a reabilitação da terra iniciando logo após a conclusão da extração. 

Para implantar a mineração, a CBA precisa convencer os agricultores a assinarem um contrato de uso da terra. Na região, ela não compra o terreno, mas paga aos donos dos terrenos para usar o solo e extrair a bauxita. O que popularmente é chamado de “arrendamento”. No contrato de arrendamento, fica prevista a recuperação do que sobrar de terra ao fim do processo. 

Em meio a essa política de “relacionamento com a comunidade”, como as mineradoras chamam sua gerência responsável, inclusive, por convencer os moradores a aderirem ou não se contraporem às suas estratégias comerciais, surgiu em Belisário um personagem importante para mudar o rumo da história: Frei Gilberto Teixeira. 

Desde 2010, o religioso franciscano, adepto da  Agroecologia, deixou a casa paroquial e passou a morar num sítio da zona rural de Belisário. Seu intuito era mostrar, na prática, como era possível produzir alimentos sem o uso de venenos (agrotóxicos). 


Em 2016, após um período de estiagem prolongada, no qual muitas nascentes locais estavam secando, além de tentar convencer os agricultores a não usarem agrotóxicos, frei Gilberto passou a focar seus discursos na proteção das águas, denunciando a atuação da CBA, que já lavrava bauxita em cidades vizinhas e avançava sobre Belisário.  

Em outubro do mesmo ano, uma manifestação contra a mineração foi realizada no distrito. Um mês depois, os ânimos se acirraram quando a empresa mineradora passou a compor o Conselho Consultivo do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro, unidade de conservação que perpassa o distrito. O temor era que com a CBA participando da revisão do plano de manejo do parque, a zona de amortecimento da unidade fosse reduzida, facilitando o avanço da mineração.

Diocese de Leopoldina denunciou ameaça de morte sofrida por frei Gilberto Teixeira (Foto: Diocese de Leopoldina/Divulgação)


Ameaça de morte  

Em fevereiro de 2017, após a missa da manhã de domingo, frei Gilberto foi abordado ao entrar na casa paroquial. Um homem armado avisou estar monitorando todos os seus atos e movimentos e que aquele seria o último aviso para se calar sobre a mineração de bauxita na Serra do Brigadeiro e seu entorno.

Porém, por força de uma forte articulação local, a ameaça teve efeito contrário ao esperado. Quatro dias após o ocorrido, a Diocese de Leopoldina denunciou a ameaça de morte e cobrou investigação, atraindo para Belisário os holofotes da imprensa, ambientalistas, políticos, religiosos e impulsionando a mobilização da comunidade local. Mais de 70 organizações assinaram uma nota em solidariedade ao religioso, que foi incluído num programa de proteção do Estado, e o tema se tornou nacional. 

O caso repercutiu em todo estado. “A ameaça não foi ao frei, mas a todo mundo que está se posicionando contra a chegada da mineradora. O dinheiro da mineração pode até solucionar alguns problemas imediatos, mas vai deixar outros ainda maiores e a população já entendeu isso. A água é um bem maior do que o minério”, disse o frei à época. 

Nos meses seguintes, foi realizada uma série de eventos na região. Atos,  caminhadas pelas águas, missas em apoio ao padre, encontros em defesa do território, além de assembleias nas quais se debatiam os impactos da mineração na região.

Ato em Muriaé em outubro  de 2016 contra a ampliação de mineração de bauxita no entorno do território da Serra do Brigadeiro. Fonte: Arquivo MAM


7º Vivência Missionária em Belisário, com o tema ‘O caminho se faz caminhando com coragem e profecia.’
Fonte: Arquivo MAM

Missa realizada na Cachoeira do Nahor finalizando a caminhada pelas águas. Crédito:Maria da Penha Moreira



As ações geraram no distrito a ampliação do conhecimento sobre os impactos e riscos da chegada da mineração e criaram um consenso pela manutenção das águas do distrito. A partir desse processo amadureceu-se a ideia de criar meios para proteger os recursos naturais, tornando o distrito local livre de mineração. Um desses meios seria aprovar leis de proteção hídrica. Outro seria manter os espaços de debates sobre o tema no distrito.
“Belisário é uma região produtora de água. Sem água a gente não consegue realizar nossa  agricultura. Isso toca na sensibilidade das pessoas. As pessoas começaram a ver que o que eles têm de mais importante são as suas nascentes. Hoje isso é consenso aqui em Belisário”, afirma frei Gilberto.


Frei Gilberto conta que em 2019, uma outra mineradora entrou com o pedido de licença para lavrar em Belisário. Porém, ao apresentar o projeto em audiência pública lotada e receber dezenas de questionamentos, a mineradora elogiou a organização local e abandonou o plano de minerar no distrito. 


Defesa das águas embasada em documentos oficiais e pesquisas

Para criar condições para aprovar leis que protegessem Belisário da mineração, era preciso provar que a maior riqueza local não é a bauxita, e sim a biodiversidade, a abundância de água e o modo de vida da população e suas expressões culturais. Uma dessas provas veio na pesquisa de mestrado em Ecologia e Recursos Naturais, realizada pelo pesquisador, Guilherme Campos Valvasori. 

Uma série de características da região apontadas por Valvasori, tais como os solos bem drenados, com grande capacidade de armazenar água, a presença de remanescentes florestais, dentre outras, fazem com que Belisário seja privilegiada em termos de disponibilidade de água.  A média de nascentes no local apontada pelo estudo é superior a uma a cada nove hectares, sendo que metade das propriedades locais possui pelo menos duas nascentes. No total, foram catalogadas 2.000 mil nascentes no distrito. Estava aí uma riqueza a ser apontada.

Por meio da articulação da Igreja Católica com o comitê local de enfrentamento à mineração, também foi realizada uma Cartografia, com o apoio do Laboratório de Estudos em Geopolítica do Capitalismo, da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

A cartografia foi feita em 2018, com os encontros entre os pesquisadores e a comunidade de Belisário. Dois mapas foram produzidos, um com questões positivas apontadas pelos moradores e outro com ameaças. Para o professor adjunto do departamento de Geografia da UFV, Gustavo Iorio, um dos pesquisadores que conduziu o trabalho – junto com o professor Lucas Magno, do Instituto Federal Sudeste – um dos fatores que chamou a sua atenção durante a produção desses mapas foi a sobreposição entre água e as pequenas propriedades locais, com as nascentes estando presentes onde existe agricultura familiar.


Mapa de anúncios produzido pela comunidade de Belisário em conjunto com o Projeto de Cartografia social produzido pelo Laboratório de Estudos em Geopolítica do Capitalismo – LEGEC/DGE, da Universidade Federal de Viçosa


Mapa de ameaças ao território produzido pela comunidade de Belisário em conjunto com o Projeto de Cartografia social do Laboratório de Estudos em Geopolítica do Capitalismo – LEGEC/DGE, da Universidade Federal de Viçosa


#monitore

Provas recolhidas e lei criada (sob ataques)

As pesquisas comprovando a ameaça contra 2.000 nascentes de água, os mapas da cartografia social e outros documentos embasaram o projeto de lei que chegou ao Executivo e ao Legislativo de Muriaé, pedindo algo para lá de vanguarda mundial: tornar Belisário um Patrimônio Hídrico de Muriaé, um território livre de atividades predatórias de recursos naturais. Assim, em novembro de 2018, foi aprovada a lei nº 5.763, que resguarda uma área de mais de 10 mil hectares no distrito, com área protegida chegando aos limites dos municípios de Miradouro, Ervália e Rosário da Limeira. A lei ainda institui como obrigação do Poder Público, incentivar “a realização de atividades econômicas e sociais sustentáveis, como a prática do turismo natural ou ecológico, a agricultura familiar sustentável, a conservação ambiental e a promoção da pesquisa científica e educação ambiental”.

Acesse o documento na integra (link)

Já em dezembro de 2019, um ano após a aprovação da lei, também foi aprovado na Câmara de Muriaé um plano diretor que expressa a proibição da mineração no distrito de Belisário e em três unidades de conservação do município. A lei havia sido vetada pelo Prefeito do Município, mas o veto foi derrubado pela Câmara Municipal que promulgou o Plano Diretor como a Lei nº 5.915/2019. Acesse o plano diretor na integra (link)



Entidades alegam inconstitucionalidade 

A moderna legislação criada em Muriaé, por seu potencial de provar ser possível contrapor todo um arcabouço de facilidades legais para a instalação de grandes empreendimentos predatórios, gerou uma reação imediata do setor que representa a mineração. Em julho de 2020, sete meses após a aprovação do Plano Diretor, a Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) entrou com um pedido judicial de inconstitucionalidade da lei. Ela alegou que os artigos 11 e 51 foram incluídos por emendas aprovadas à véspera do encaminhamento do projeto de lei ao prefeito, sem observar o rito formal de criação da lei (processo legislativo). 

A Fiemg afirmou também que a lei viola a livre iniciativa, não sendo competência do município criar lei que impeça atividade minerária em seu território, uma vez que esse é tema de interesse nacional e somente a União pode legislar sobre mineração. 

Já quem defende a legislação, alega que a Constituição Federal garante aos municípios promulgar leis de interesse local e de ações em prol da proteção ambiental, como por exemplo, proteger seus recursos naturais. 

Veja o documento apresentado pela Fiemg e o parecer do Ministério Público (links) 

No curso do processo judicial, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) manifestou pelo reconhecimento da inconstitucionalidade da lei, afirmando que “não cabe ao Município inviabilizar a atividade minerária”

A Câmara Municipal de Muriaé, em documento emitido em resposta aos questionamentos do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), contesta, afirmando que a aprovação da lei seguiu os ritos legais. Porém, o então Prefeito de Muriaé, Ioannis Grammatikopoulos (PSD), conhecido como Grego, derrotado em 2020 em sua tentativa frustrada de reeleição, também em resposta ao TJMG, se mostrou favorável ao pedido de inconstitucionalidade. 


Documento emitido pela Câmara municipal, em outubro de 2020, em resposta ao um questionamento sobre a legalidade do Plano Diretor

Um documento produzido pela Prefeitura de Muriaé afirma que a proibição da mineração, além de ferir a Constituição Federal e a Constituição do Estado de Minas, acarretará grave impacto na economia da área protegida.


O que diz a CBA 

“A Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) esclarece que possui direitos minerários na Zona de Amortecimento  do Parque Estadual Serra do Brigadeiro, área passível de licenciamento ambiental e que já apresenta interferência humana (antropização). Atualmente, a Companhia não possui atividade de extração de bauxita no local. 

Adicionalmente, a CBA reitera o seu compromisso com o bom relacionamento com a comunidade local, por meio da prática constante de diálogo e investimentos em processos de preservação ambiental e desenvolvimento sustentável dos territórios.” 

O que diz a Fiemg 

“A Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG) é favorável a toda atividade econômica que gera emprego e renda para a comunidade em que está inserida e que atue de forma responsável com o meio ambiente e em conformidade à legislação. A atividade minerária em Muriaé proporciona um importante impacto social positivo e não deve ser proibida, mas fiscalizada. Além disso, a FIEMG vê na Lei municipal Nº 5.915/2019 uma invasão de competências, uma vez que a Constituição Federal atribui à União a responsabilidade por legislar sobre a atividade minerária.”



#aja

Próximo episódio

Na época da ameaça de morte ao frei, o ex-prefeito Greco se posicionou favoravelmente à proteção dos recursos e afirmou aos jornais que a cidade não tinha boas lembranças da mineração. 

Em janeiro 2007, o rompimento de uma barragem da mineradora Rio Pomba Cataguases Ltda, em Miraí (MG), cidade vizinha de Muriaé, provocou o vazamento de pelo menos dois bilhões de litros de lama misturada com bauxita e sulfato de alumínio no Rio Muriaé, que transbordou. O nível da água subiu até quatro metros e sete bairros do município ficaram alagados. Segundo a prefeitura, 1.200 casas foram atingidas. Sobre essas contradições que demonstram ações contra a teia de legislações modernas de proteção às águas, que vem se criando na Zona da Mata mineira, que nós, do Lei.A, vamos falar no próximo episódio da série especial “Territórios livres: o Direito a dizer NÃO aos empreendimentos predatórios”.

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