Enquanto busca respostas para 100 anos de enchentes e mortes, Belo Horizonte tem experiência exemplar no bairro Ribeiro de Abreu
Cerca de mil famílias serão retiradas de área de risco para devolver espaço ao ribeirão
Há décadas, no verão, as manchetes tristes noticiam os impactos da chuva em Belo Horizonte. Mas foi só após a noite de 28 de janeiro de 2020, quando as águas do Córrego do Leitão (canalizado e transformado em avenida e ruas) invadiram pontos comerciais e casas da zona nobre da cidade, que a grande mídia entrou no debate sobre a cobertura dos rios urbanos para a expansão de ruas, avenidas e outros empreendimentos.
Por outro lado, há anos, estudiosos alertam sobre os riscos desse avanço da cidade e do concreto sobre o leito de seus rios e córregos. Um bom exemplo é esse conteúdo de Instagram produzido pela agência Área de Serviço, parceira do Lei.A, baseado no livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, de Alessandro Borsagli:
Mas bem no coração da Região Metropolitana de Belo Horizonte, uma comunidade vai na contramão desse processo de canalização das águas correntes da capital. O que acontece às voltas do Ribeirão Onça, que corta o bairro Ribeiro de Abreu, na região Nordeste, é a prova do quanto é possível se relacionar com os rios de forma diferente e respeitosa, assumindo a existência deles e reconhecendo toda vida que os envolvem. É sobre essa experiência que nós do Lei.A falamos aqui, com a intenção de mostrar como cidadãos que se apropriam do conhecimento e de suas próprias potências são capazes de transformar um lugar e inspirar novas políticas públicas.
#conheça
Eram cenas típicas do começo do ano: a chuva vinha, e com ela, o desespero de milhares de famílias moradoras das margens do Ribeirão Onça. Sem ter para onde correr, a água tomava conta das casas, destruindo o que havia pela frente.
A bacia hidrográfica do Ribeirão Onça tem início no município de Contagem e passa por bairros das regiões Norte e Nordeste de Belo Horizonte. São 11,59 quilômetros de extensão, dos quais quilômetros dentro da capital mineira, entre a confluência do Córrego Cachoeirinha com o Ribeirão Pampulha, até o lançamento no Rio das Velhas. Cerca de 30% desse curso é canalizado.
Curso d´água recebe o nome de Ribeirão Onça quando é formado pelo encontro do Córrego Cachoeirinha e Ribeirão Pampulha, próximo a estação de metrô São Gabriel, desaguando no Rio das Velhas, em Santa Luzia.
O processo de interferência humana no leito do Onça seguiu a tendência histórica do modelo de ocupação da área onde Belo Horizonte foi erguida ao final do século XIX. Ao contrário de manter os cursos d´água à vista, suas existências foram, de certa forma, negadas. Milhares de nascentes e leitos de córregos e rios passaram a ser retificados e canalizados para dar lugar a avenidas e empreendimentos imobiliários.
Com o solo cada vez mais impermeável, a existência dessas águas “tampadas” passou a se mostrar por meio de enchentes, alagamentos, destruições e mortes causadas pela água das chuvas. Na região do Onça não foi diferente. Muitas casas foram construídas próximas ao ribeirão, estando sujeitas ao perigo das chuvas toda vez que o verão chegava. Mas ao invés de travar uma briga com o rio que insiste em seguir seu fluxo, a comunidade tomou uma decisão diferente: passou a pensar alternativas de respeitar o caminho das águas e formas de transformar o ribeirão num espaço positivo para os bairros ao seu redor.

Fonte: Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Velhas)
Viver com o rio vivendo
A luta para integrar o Onça, mesmo poluído, ao dia-a-dia dos moradores começou em 2001, com a criação do Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (Comupra). O grupo formado por moradores do bairro passou a pensar um modelo novo de convívio com as águas do ribeirão, tanto nas secas quanto nas cheias.
“Ao longo da história, sociedades inteiras se formaram entrelaçadas aos cursos de rios. Eles são como as veias do corpo humano: irrigam e transportam nutrientes e toxinas, possibilitam a vida. Por eles também, em última instância, são transportados os nossos lixos e descartes, para longe dos nossos olhos. Na maioria dos casos, os cursos d’água passam despercebidos aos olhos dos sujeitos urbanos e do poder público. Mostrar que o Onça é importante, que a comunidade se relaciona e se mobiliza por ele, é um grande passo para fazer o poder público repensar a forma como atua em relação às águas que correm na cidade”, analisa Carla Wstane, uma das colaboradoras do Comupra e integrante do Projeto Manuelzão.

Cachoeira com 31 metros de altura, no bairro Novo Airão.
Seguindo essa linha, o Ribeirão Onça é o principal eixo para as ações coletivas nas áreas de educação ambiental, saúde, trabalho e geração de renda, funcionando
As ações populares movidas pelo Comupra passaram a pressionar a Prefeitura de Belo Horizonte por intervenções na região do Onça. Uma das principais reivindicações foi a retirada dos moradores das áreas de risco de inundação, na beira do ribeirão. Em 2014, foi feito um estudo, que apontou a necessidade de se realocar 1,3 mil famílias. De lá para cá, após alguns anos de negociação com a Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (Urbel), 374 remoções foram concluídas e outras 634 estão em processo. Algumas famílias optaram por indenização e outras serão reassentadas em unidades habitacionais construídas pelo município.
Os próprios moradores e comerciantes da região colaboram para o conselho seguir atuante. “Tentamos fazer um trabalho constante de mobilização e incentivo para construir com a comunidade todas as ações. Conseguimos que a Copasa cedesse a casa onde atualmente temos a nossa sede administrativa. O casarão é uma antiga fazenda bem perto do ribeirão e o usamos para encontros, oficinas e mutirões”, conta Maria Luisa Lelis Moreira, psicóloga social e colaboradora do Comupra.
Todos os anos, o movimento “Deixem o Onça Beber Água Limpa”, coordenado pelo Comupra, realiza encontros abertos propondo novas formas de requalificação socioambiental e participativa do Ribeirão Onça e da região. Em 2019, por exemplo, o lema escolhido foi “Viver com o Rio Vivendo”, uma proposta de trazer vida nova a essas áreas de risco, transformando-as em lugares de encontros e afetos.
#monitore
Existem outros objetivos a serem alcançados por meio dessa mobilização, como a interceptação de 100% dos esgotos da região. Estudos do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Velhas) enquadram a qualidade da água do Ribeirão Onça como “classe três”. Isso significa que só pode ser consumida após tratamento convencional ou avançado.
Também são demandas, a construção do novo acesso ao bairro Ribeiro de Abreu e a municipalização da rodovia MG-20. “Se essa rodovia tão próxima ao ribeirão deixa de ser responsabilidade do governo estadual e passa a ser responsabilidade da prefeitura, fica mais fácil o nosso acesso às políticas públicas, porque já estamos mais próximos da atuação do município”, explica Maria Luisa.
Sonhando – e fazendo – um Parque Ciliar
As ações organizadas pelo Comupra nas áreas onde antes estavam localizadas as casas em risco fazem parte da construção de um sonho: o Parque Ciliar do Ribeirão Onça. O projeto prevê espaços comuns, como pistas de caminhada, ciclovias, quadras, parquinhos, academias e outras hortas comunitárias para uso de todos. As reuniões para as discussões e planejamento do parque são feitas por meio de oficinas da Urbel nas escolas parceiras da região, sempre aos finais de semana. “Envolver os moradores nesse processo não é fácil, mas o resultado é extremamente positivo, porque eles se politizam, se sentem sujeitos dessas mudanças e vibram com as conquistas”, explica Maria Luisa.
Enquanto o empreendimento como um todo aguarda a viabilização de captação de recursos por parte da Prefeitura de Belo Horizonte, a comunidade já vem colocando – e muito – a mão na massa. Por meio de mutirões, os moradores vão, aos poucos, recuperando nascentes e sinalizando as trilhas ao redor do ribeirão. Também construíram a primeira agrofloresta urbana da cidade, além do próprio campinho e da horta comunitária que já integram as áreas onde antes estavam as casas em risco. “Foi tudo feito por meio de mobilização do Comupra, em parcerias essenciais como as escolas municipais, estaduais e particulares do entorno do Ribeirão Onça, o Projeto Manuelzão, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) e o Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Onça (SCBH Ribeirão Onça) e muitas outras que chegam reconhecendo a potência desse movimento”, pontua Carla.
#Aja
Lute pela água enquanto existe tempo
As conquistas na região do Ribeirão Onça por um rio em harmonia com o meio urbano são mérito de uma comunidade que se conscientizou da importância dessas águas para todos os moradores da cidade e lutou por esse reconhecimento. Essa história também fala sobre a urgência em conhecer os coletivos e projetos que fazem essas ideias serem possíveis.
“Nosso modelo de cidade é feito para fluidez do capital. As questões como lazer, bem estar, mobilidade, verde, ecologia, são postas como secundárias dentro das necessidades tratadas como mais emergenciais para alcançar o lucro. Esses movimentos, quando se juntam e atuam, trazem uma crítica enquanto modelo de desenvolvimento. Mostram, na prática, que é possível a construção de outros laços territoriais, reformulando o que se entende por cidade”, detalha Rodrigo Lemos.
Se você se sensibilizou pelo tema e quer contribuir com quem luta por essa causa (que no fundo, é de todos nós) participe e fortaleça quem já faz parte desse movimento, seja oferecendo a sua colaboração, ou compartilhando o que essas pessoas realizam para potencializar essas ações:
Sub-Comitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão do Onça – grupo consultivo e propositivo, vinculado ao CBH-VELHAS – Tel: (31) 3409.9818
Comupra – Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu – organização responsável pelo movimento“Deixem o Onça Beber Água Limpa”. Realiza projetos e atividades voltadas para a região durante todo o ano, promovendo transformação por meio da educação ambiental – Tel: (31) 3435-6754.
Projeto Manuelzão – Projeto de ensino, pesquisa e mobilização social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) .
Coletivo Às Margens – Através de ações em escala local, o grupo propõe investigações e discussões sobre o lugar das águas e das pessoas nas cidades.
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