Fruto da Bolsa-Reportagem concedida pelo Observatório de Comunicação Ambiental (Lei.A), via recursos da Plataforma Semente, do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), esta série de reportagens traz a história de ressurgimento do povo Borum-Kren, remanescentes dos Botocudos da região dos Inconfidentes, em Minas Gerais
Neste segundo conteúdo, vamos acompanhar o processo de ressurgimento dos Borum-Kren
Na primeira parte desta série, tratamos sobre o enfrentamento que os povos originários brasileiros impuseram aos colonizadores portugueses e o que isso lhes causou: para muitos, o exílio, a morte, a escravização ou o ocultamento.
No Brasil e no mundo, são muitos os exemplos de povos que foram combatidos, perseguidos e mortos, com as mais cruéis e diferentes estratégias, somente para que outros pudessem exaurir o solo em busca de se enriquecerem.
Minas Gerais é um dos estados brasileiros onde a corrida pelo ouro abriu grandes feridas, no solo e nos povos que aqui viviam antes de chegarem os europeus. Tudo isso, no entanto, não impediu que muitas das etnias que estiveram próximas de serem apagadas do planeta sobrevivessem, se reerguessem e se ressignificassem. Onde tomba uma árvore, outras tantas podem (re)surgir.
As árvores Botocudas do território que hoje é o Brasil eram muitas antes da chegada dos portugueses e outros europeus que colonizaram esta terra. De grande porte, resistentes, muitas das que tombaram voltaram a renascer através de seus descendentes. Uma delas, que vivia na região do Alto Rio das Velhas, quase desapareceu, mas as sementes aguardaram no solo de cidades como Ouro Preto, Itabirito, Mariana e outras das cabeceiras do rio que eles chamavam de “Uaimií Minhag Makian” (algo como “rio dos ancestrais das velhas pessoas”) esperando o tempo de germinar.
Os bandeirantes que ali chegaram, por volta de 1700, encontraram uma região “de uma selvageria tal que nenhuma descrição, por minuciosa que fosse, daria uma fraca ideia desses vales sinistros”. É o que relata Augusto de Lima Jr., jornalista e historiador do século XX, no livro “Vila Rica de Ouro Preto”. Segundo ele, as “grotas abertas pelos córregos que desciam a serra” eram cobertas por imensas florestas de jacarandás pretos, araucárias e outras árvores de madeira rígida, habitadas por animais ferozes e peçonhentos, que, escreve ele, “infestavam essas regiões sinistras que nem índios toleravam”.
Era dali que o famoso ouro preto, que levava esse nome por vir coberto de uma camada de óxido de ferro, “saía da terra com tanta fartura que ninguém pensava em permanecer naquele inferno mais do que o tempo de enriquecer em poucos dias”, narra Lima Jr.
Todo esse ouro, de alta pureza, alimentou uma ganância que destruiu boa parte do bioma da região, deu o nome à cidade que foi capital de Minas Gerais por muitos anos. Por causa do ouro, os Botocudos que viviam na região foram obrigados a fugir ou a se esconder, negando, ao menos aos olhos externos, sua origem e história.
Cegos pelo “ouro preto”, os exploradores do século XVIII e seus descendentes não foram capazes de enxergar as sementes que caíram no chão atrás do rastro de destruição que deixaram – e os Botocudos ressurgiram.
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O ressurgimento Borum-Kren
Quadrilátero Ferrífero: a região onde estão os remanescentes dos Borum-Kren Foto: Leonardo Ramos
“Nós somos Borum-Kren, povo indígena do Alto Rio das Velhas e Alto Rio Doce. Esse nome é da nossa autodeterminação. Nós nunca saímos desta terra. Minha família mora no mesmo terreno há mais de 150 anos. O rio das Velhas é um rio sagrado para nós.” Assim o cacique Danilo Borum-Kren apresenta seu povo.
Os Borum-Kren são descendentes dos antigos Botocudos que viviam no Alto Rio das Velhas. Eram chamadas “Botocudas” várias etnias que utilizavam botoques como adereço no rosto e possuíam, segundo os colonizadores, um caráter “feroz”. Como eram caçadores-coletores, não se fixavam em aldeias e percorriam longas distâncias durante o dia, parando à noite para descansar. Assim, as regiões em que eram encontrados eram sempre muito extensas.
Esse aspecto feroz e a maneira como se defenderam das investidas de bandeirantes alimentou uma guerra declarada pela Coroa Portuguesa. Suas crianças foram raptadas, suas mulheres, estupradas, seus homens, covardemente assassinados ou escravizados – ainda que o reino português oficialmente vedasse a escravização indígena.
Tudo isso fez com que, aqueles que não fugiram, tivessem de se ocultar e passar despercebidos aos olhos do Estado e das pessoas hostis às causas dos povos originários.
A memória Borum-Kren está ligada, principalmente, a regiões que hoje são distritos de Ouro Preto e cidades vizinhas, como Itabirito e Mariana, mas não só. Além do fato de que “fronteira” é um conceito alheio aos povos originários, seus parentes podem ser encontrados em outras cidades do entorno, como Ouro Branco ou Congonhas, bem como fora do território de Vila Rica, devido à diáspora a que foram submetidos pelas incessantes perseguições.
“Tô fechando a porteira, tô fechando a porteira…”
Mas foi lá dentro mesmo de Ouro Preto que a semente dos Botocudos da região dos Inconfidentes brotou e frutificou. Danilo Campos (cacique Danilo Borum-Kren), descendente de indígenas e natural do distrito Santo Antônio do Leite, ouviu o chamado dos ancestrais para resgatar a memória e a presença de seus parentes numa região em que até hoje se diz que não há indígenas. Ele conta que, embora em sua família todos tivessem consciência de sua origem, alguns conhecimentos poderiam se perder com a morte dos “buticudo” – como dizia sua avó – mais velhos. “Tô fechando a porteira, tô fechando a porteira…”, dizia ela, perto do fim desta vida, pois era a última de sua geração. Foi então que ele sentiu a urgência de resgatar os conhecimentos ancestrais guardados com sua avó.
Danilo encontrou, por exemplo, um pilão feito pelo avô da sua avó, também indígena originário da região. Sua mãe e suas tias são raizeiras, guardiãs da sabedoria da medicina natural, e com elas, Danilo aprendeu a reconhecer as plantas e seus benefícios para a saúde corporal e espiritual.
Recolhendo informações com “os antigo”, como ele diz, aprendeu a fabricar e manusear o arco e diversos tipos de pontas de flechas. No peito, ele carrega um colar com a ossada de uma de suas caças, como forma de honrá-la. Ele fez os botoques que ostenta em suas orelhas, o cocar que usa em sua cabeça, descobriu que o fogo mora na madeira e foi ensinado a como convidá-lo a sair, a dançar e a cantar com ele.
Mas esse processo não se restringia, para ele, a viver uma experiência solitária, que talvez pudesse ser confundida como brincadeira pelas mesmas pessoas que ainda hoje afirmam que não há indígenas em Vila Rica. A vida dos povos originários é, por essência, coletiva, e ele, se denominando como descendente buticudo, pôs-se a caminhar pela região, procurando o rastro de seus parentes. E ele afirma ter os encontrado, dispersos não só por ali, mas por Minas Gerais e até na Bahia. Aos poucos, eles foram se constituindo como coletivo, que atua no fortalecimento de sua identidade e na busca de outros descendentes exilados de sua terra ancestral. Alguns deles deixaram depoimentos nos vídeos que preparamos, onde contam como foram seus processos de autorreconhecimento indígena, sua relação com o território e sua constituição como povo Borum-Kren, remanescentes dos Botocudos da região dos Inconfidentes.
“Os Borum-Kren são quase que um milagre. Eles são de uma região do núcleo minerador mais opressor e de maior degradação ambiental do ponto de vista histórico que temos em Minas Gerais”, ressalta Alenice Baeta, arqueóloga e membro do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), que acompanha o processo de ressurgimento dos Borum-Kren.
Ela lembra que a guerra travada pela Coroa Portuguesa contra os temidos Botocudos relegou alguns à escravidão – uma vez que conheciam a região, outros ao exílio e, alguns, a diferentes estratégias para passarem despercebidos.
“Então quando a gente fala que ainda existem famílias indígenas nessa região, a gente imagina o que eles não fizeram para driblar as políticas de repressão, desde o período colonial, passando pelo imperial e até os dias de hoje. E, obviamente, a ligação com a ancestralidade indígena deveria ser uma forte maneira de escapar da repressão e se misturar a trabalhadores comuns”, diz a arqueóloga.
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Os frutos carregam a memória da árvore
O processo de ressurgimento é muito delicado e sensível. Deve ser tratado com respeito e reverência por quem o testemunha. Como diz Bárbara Borum-Kren, “do ‘nós tem sangue de índio’ até o ‘eu sou indígena’ é um longo caminho que deve ser percorrido de encontro ao lar ancestral”. Esse caminho, repleto de doces e dolorosas memórias, é percorrido de diferentes formas por cada família e, muitas vezes, é iniciado por uma pessoa que se encontra com suas raízes.
Bruna Borum-Kren conta que, após se encontrar com o Cacique Danilo e se reconhecer como indígena, ela foi contar para a família o que tinha descoberto e foi prontamente acolhida por um tio, que confirmou a ancestralidade vinda de sua bisavó. “Foi uma coisa que me trouxe mais segurança. Em casa, nunca tinha sido dito ainda algo sobre a questão indígena”, conta Bruna.
Outras vezes acontece de todos estarem conscientes de sua origem mas não se assumirem como indígenas por pressão social, com estereótipos criados, como o do “bom selvagem”, por exemplo.
“Sempre me reconheci indígena, mas me declarava como pardo, porque a gente tinha a ideia de que indígena é quem vivia no mato, como muita gente ainda tem”. Esse é o depoimento de Sessé Borum-Kren, que mudou a maneira de se identificar quando descobriu que “pardo” é considerado negro para todos os efeitos no Brasil.
Ao mesmo tempo em que desperta orgulho de suas raízes originárias para aqueles que estão se autorreconhecendo, os força a encarar as violências que foram praticadas contra seus ancestrais e contra os próprios sujeitos do ressurgimento. “Pega no laço” é um termo comum de se ouvir na fala dos mais velhos quando vão falar de suas avós, bisavós, enfim, de suas ascendentes mulheres, pois era assim que o sequestro de mulheres era narrado para eles – uma realidade que não aconteceu apenas com indígenas. Com isso, o horror da crueldade é atenuado, permitindo que se perpetuem as diferentes violências a que os povos foram submetidos neste território e transformando o passado de construção do país numa memória romantizada.
Ouvir e ver as histórias de cada um dos Borum-Kren sobre o processo de se reconhecer como indígena e, em seguida, como povo, nos dá a dimensão do que é essa viagem de volta ao lar ancestral. Confira no vídeo a seguir:
As raízes e a terra
Esse “problema de memória” é comum no Brasil. A região dos Inconfidentes, por exemplo, segundo relatos de moradores, guarda vestígios dos Botocudos que viviam lá quando chegaram os homens atrás do ouro. No entanto, mineradoras ou outras atividades extrativistas nem sempre são particularmente cuidadosas com os memoriais que a terra guarda.
Sessé conta que a mineradora que atua no bairro Bocaina, em Ouro Preto, é uma delas: “Há relatos de uma urna indígena que foi encontrada aqui na região e a mineradora fez uma pilha de estéril em cima do local onde a urna estava”. É comum ouvir por lá, mesmo de funcionários públicos, que “aqui não tem índio”. Não como se tivesse havido antes e tivessem sido exterminados, mas no sentido de nunca ter havido indígenas na região de Vila Rica. “Eles nem falam que acabaram, eles falam que não tinha [indígenas]. Só pegando os documentos antigos e rodando pelos distritos de Ouro Preto é que você vê essa população indígena que ainda está presente. A região aqui é cheia de vestígios arqueológicos”, diz Sessé.
Essa relação com a terra ancestral continua mesmo para aqueles que já não moram mais lá. É o caso da Bárbara, que nasceu em Belo Horizonte e hoje mora na Bahia. Sua ascendência indígena por parte de pai é originária de Rodrigo Silva, outro distrito de Ouro Preto. Segundo ela, sua família é consciente de suas origens, mas ela não sentia o pertencimento a um povo. Até que um tio disse a ela que tinha um sonho: “ir atrás de nossas raízes”. “Ele dizia que queria voltar para as nossas origens, mas que ele não tinha conseguido durante sua vida. E ele queria que eu realizasse isso por ele”, conta Bárbara. Semanas depois dessa conversa, ele faleceu. Foi quando ela iniciou sua viagem ancestral.
Durante o percurso, conheceu a Associação Multiétnica Wyka Kwara, que acolhe indígenas remanescentes em contexto urbano nas suas mais diversas necessidades – incluindo o processo de reconhecimento étnico e de retomada. Foi lá que ela conheceu o Cacique Danilo.
“Ele me falou que toda a história que eu contei tinha a ver com o processo de colonização daquelas áreas, que com essa febre do ouro fez com que se desencadeasse uma guerra de extermínio contra o nosso povo”, lembra. A partir dali, ela pôde se sentir pertencente a um povo.
Vamos resgatar o que foi dito na primeira parte desta série: o processo de reconhecimento étnico é um caminho percorrido pelo sujeito em reconhecimento e seu povo. É importante respeitar esse processo e incentivar outras pessoas que também o façam. São diversas as violências que os povos originários sofreram e sofrem neste país. Entender a dinâmica dessas violências e agir contra elas é essencial.
O conflito inicial, que dá origem aos demais, é territorial: os portugueses que aqui chegaram declararam posse sobre a terra onde viviam milhões de pessoas das mais diferentes etnias e que possuem outra relação com seu local de origem. Veja no vídeo a seguir o que os Borum-Kren tem a dizer sobre sua ligação com o território.

#aja
Os frutos da Mãe-Terra
A porteira não se fechou. Os Borum-Kren continuam se reafirmando vivos e fortes, lutando para que seus saberes, sua existência e seu território sejam reconhecidos também pela comunidade local e nacional. O conhecimento ancestral está sendo resgatado, os parentes, localizados, o povo, se reunindo.
“Do ponto de vista mais amplo, é patrimônio cultural o que a comunidade que está vinculada àquele saber social, que vive aquele patrimônio, o reconhece como tal. Para que esses aspectos já vivos, presentes da dinâmica social desses coletivos seja recepcionado de forma mais direta por políticas públicas, ele precisa passar pelo processo de reconhecimento institucional. Mas o mais importante é a política pública entender o que é patrimônio cultural para aquela comunidade. E quem vai dizer isso são os próprios detentores”, diz Michele Arroyo, historiadora e ex-presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.
Para ela, histórias que foram ignoradas ou mesmo silenciadas pelo poder público precisam ser reconhecidas como parte da história do Brasil. “O que ficou silenciado, o que ficou escondido porque não era compreendido como parte importante da história, como patrimônio cultural, hoje deve ser recepcionado e reconhecido, não porque o poder público é ‘bonzinho’, mas porque as comunidades estão se autorreconhecendo, se ressignificando e compreendendo os seus direitos de voz e de manifestação, e exigindo que as políticas públicas reconheçam sua história, seu patrimônio, suas vivências e seus valores como parte da história do município, do estado, do país”, finalizou.
Essa é a luta dos autodeclarados Borum-Kren. No vídeo a seguir, você verá como eles chegaram a esse nome e como constituíram um coletivo que luta para resgatar a história dos Botocudos da região e manter vivos seus saberes ancestrais.
“Hoje nós somos os remanescentes desse povo que conseguiu sobreviver a essa guerra de extermínio. O nosso coletivo se chama ‘Borum-Kren: Vivos e Fortes’. Porque estamos provando que estamos vivos e fortes. Hoje tem muitas pessoas fazendo parte do nosso coletivo”, afirma cacique Danilo. Seu desejo é que a história do seu povo seja respeitada e divulgada. “O que a gente precisa é que a nossa história seja contada da forma que ela é. A gente deixa bem claro que a gente não disputa território com nenhum outro povo, e que a nossa terra ancestral é onde o nosso povo reside até hoje. Pela sua questão geográfica, de relevo e vegetação, fez com que nossos antepassados pudessem esconder e sobreviver. Que as pessoas saibam que nós somos o povo dessa região. A gente precisa que as pessoas também respeitem a nossa história, que possam saber do trabalho que a gente está fazendo e que cheguem até nós, principalmente as que pertencem ao nosso povo e que estão espalhadas por aí”, completou.