Ressurgimentos Originários – As árvores e as sementes

Segundo conteúdo da Bolsa Reportagem concedida pelo Observatório de Comunicação Ambiental (Lei.A), via recursos da Plataforma Semente, do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), traz conteúdo especial sobre o ressurgimento do povo Borum-Kren, remanescentes Botocudos da região dos Inconfidentes, em Minas Gerais

Essa série se divide em dois episódios – “As árvores e as sementes” e “Os frutos”. No primeiro, um apanhado histórico sobre processos de genocídio e ressurgimento de povos, numa analogia com algumas árvores tombadas que voltaram a se erguer no Brasil e no mundo. No segundo, falaremos sobre os frutos de uma árvore botocuda que voltou a germinar: contaremos a história do povo Borum-Kren.

Para dar início a esta história, fizemos um resgate de pontos importantes da colonização portuguesa, as guerras dos povos originários e uma explicação sobre como etnias consideradas extintas podem ressurgir. 

TEXTOS E FOTOS | LEONARDO RAMOS

Em 1500, quando os portugueses invadiram estas terras onde o Brasil foi constituído, havia cerca de três milhões de indígenas, segundo dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). De lá para cá, a história dos povos originários no país está marcada pelas mais diversas formas de violência. Hoje, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, esse número reduziu para quase 900 mil. 

A colonização, que devastou florestas, contaminou rios e extinguiu diversas espécies de animais, continua dando frutos no que se refere ao etnocídio de comunidades tradicionais e povos indígenas. Mas, onde se tomba uma árvore, deitam-se no solo também suas sementes, fazendo com que elas possam re(surgir), se brotarem no solo fértil.  

Em Minas Gerais, havia um grupo de diferentes povos chamado pelos portugueses de  Botocudos que dominaram parte da região por milhares de anos. Combatidos pela Coroa Portuguesa em guerra oficialmente declarada, eles foram considerados extintos no início do século XX. 

Porém, dispersos nas áreas urbanas ou rurais, escondendo sua origem aos olhos ocidentais, eles mantiveram uma memória étnica que foi passada por gerações através de conhecimentos tradicionais da medicina, da cerâmica, de sua língua e história que, como sementes, voltou a germinar séculos mais tarde. Este é o caso dos Borum-Kren, que se reconhecem como Botocudos da região dos Inconfidentes, no Quadrilátero Ferrífero, região central de Minas Gerais. 

O povo Borum-Kren é um dos frutos da árvore dos Botocudos que se negou a desaparecer e, após séculos escondida na sua terra original, localizada na região de Ouro Preto,  rebentou e está em processo de resgate étnico.

Dois remanescentes botocudos: Bárbara Borum-Kren e o Cacique Danilo Borum-Kren. Foto: Leonardo Ramos

#conheça

Como as árvores tombam

Antes de contarmos a história dos Borum-Kren, precisamos entender como os povos originários enfrentaram as diversas tentativas de extermínio de 1500 até hoje.

Não houve um povo sequer no Brasil que não tenha sofrido as consequências da colonização europeia, sejam aqueles que viveram, na maior parte do tempo, isolados dos não-indígenas, quanto aqueles contra os quais houve guerra planejada, declarada e executada. O caso das diferentes etnias Botocudas é exemplar quanto a isso. Vistos pelos portugueses como os indígenas mais temidos por sua resistência impiedosa contra todos os processos de colonização, foram oficialmente perseguidos pela Coroa. 

Em carta datada de 13 de maio de 1808, o Príncipe-Regente Dom João declara guerra contra os Botocudos:

“tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzil-os a aldear-se e a gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce (…); sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os effeitos de humanidade que com elles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que (…) peçam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das leis e promettendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis (…).”

A guerra aberta nem sempre foi a estratégia principal. Como se pode ver na carta de D. João, o objetivo era que os habitantes originários do Brasil “se sujeitassem ao doce jugo das leis e prometessem viver em sociedade, tornando-se vassalos úteis”. Para tal, o Estado Brasileiro, desde 1500 até hoje, utilizou-se de diversas ferramentas para – usando o termo do príncipe português – subjugar os povos originários. A catequese, a proibição da língua e dos costumes, o apagamento étnico, a demonização (“são antropófagos”), a zombaria (“índios são naturalmente preguiçosos”). A lista é extensa, e o resultado final dela é sempre o mesmo: a morte (ou quase) de etnias inteiras.

Em 1757, por exemplo, uma lei elaborada pelo Marquês de Pombal proibiu a escravização de indígenas – impedindo até que fossem chamados de “negros”, sob o risco, segundo ele, de “persuadir-lhes que a natureza os tinha destinado para escravos dos brancos”.  A legislação, por outro lado, também os impediu que utilizassem suas próprias línguas nos aldeamentos e incentivava matrimônios entre brancos e indígenas – o que, anos mais tarde, levaria muitas pessoas a não se considerarem mais indígenas.

Wilmar D’Angelis, linguista professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que atua na revitalização de línguas indígenas, explica como a conjunção de fatores pode levar, por exemplo, ao desaparecimento do idioma ou mesmo do povo. Segundo ele, a opressão linguística funciona muito bem em casos específicos, como aconteceu nas missões religiosas, onde missionários católicos proibiam os indígenas de falarem suas próprias línguas e os obrigavam a adotar o português como forma de se comunicarem. “Aconteceu com os Salesianos no Alto Rio Negro, com os Jesuítas no Mato Grosso até o final dos anos de 60 e em outros tipos de missão”, diz o linguista.

Mas, ainda segundo Wilmar, a repressão à língua é apenas uma faceta da violência colonial contra os povos originários. Ela faz parte de uma estratégia maior de dominação. “Em geral, a repressão à língua é só uma parte da violência que é física. Existem aquelas comunidades que deixam de falar suas línguas diante do fato de que falar a língua é ser identificado como indígena, e ser indígena… bom, é todo o resto: preconceito, violência etc. Agora, no caso da Lei Pombalina, em que se proíbe o uso da língua nos aldeamentos, quando aplicada nos aldeamentos do Nordeste, o que vai levar realmente ao desaparecimento da língua é a miscigenação que ela incentiva. Eles deixam de ser aldeamentos para se tornarem povoações, e as pessoas deixam de se reconhecer como indígenas”, conclui.

Deixar de se reconhecer como indígena era – e em muitos casos ainda é – uma forma de se evitarem maiores violências. Mas acontece que um povo pode ficar oculto, aguardando o momento de se revelar novamente. É o que acontece no ressurgimento.

As árvores que tombaram possuíam sementes

O ressurgimento de uma etnia (que a antropologia chama de “etnogênese”) exige um esforço de autoconhecimento, recuperação de uma memória coletiva e um autorreconhecimeto como grupo identitário. Esse processo  é como uma longa viagem de volta.  Da mesma forma que a semente que fecunda o solo leva muito tempo para se tornar novamente uma árvore frondosa, uma viagem que pretenda resgatar uma memória ancestral que foi combatida por séculos a fio também será longa, às vezes navegada com fragmentos de informações e cuja estrada possui trechos com vistas deslumbrantes assim como paisagens desoladoras. 

É um processo que acontece no mundo todo, sempre que pessoas ou comunidades se propõem a se reconectar com um passado que se tentou apagar. Mas, assim como a árvore cortada guarda a memória da árvore viva – seja pela permanência de suas raízes ou mesmo pelo que sua ausência provoca, as etnias que passaram por processos de genocídio também deixam seus rastros, que podem ser recuperados.

“São muitos casos pelo mundo, na Ásia, na África, na Oceania, nas Américas. Os Mapuche, no Chile, são um exemplo”, conta Pablo Camargos, historiador e indigenista na Coordenação Regional Minas Gerais e Espírito Santo da Funai. 

Os Mapuche, povo originário de Argentina e Chile, que vimos há pouco tempo como um dos protagonistas de uma série de manifestações no território chileno, passaram pelo processo de etnogênese entre os séculos XVII e XVIII, que incluiu sob o mesmo nome diversas etnias. Eles ainda lutam pelo direito às suas terras ancestrais.

Bandeira Mapuche sobre os manifestantes chilenos em Santiago (2019). Foto: Susana Hidalgo

Em Minas Gerais, povos como os Puri, os Kaxixó e os Aranã, passam também pelo mesmo processo, enquanto os Xakriabá viveram essa realidade na década de 1970. Alenice Baeta, arqueóloga e membra do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), acompanha alguns desses processos de etnogêneses no território mineiro. Ela explica que cada caso de ressurgimento é singular: os Kaxixó, por exemplo, mantiveram uma certa coesão como povo: “a gente foi proibido de dizer que era índio, mas a gente sempre esteve aqui”, disse a ela o Cacique Djalma Kaxixó, confidenciando que realizaram seus rituais de forma oculta durante muitos anos. 

Já os Aranã, também Botocudos, foram dispersos, deixando rastros de sua presença “desde Araçuaí, passando pelas regiões do Mucuri, do Jequitinhonha, e chegando até a Região Metropolitana de Belo Horizonte”, conta Alenice. Essa diáspora foi causada pela degradação de seu território originário, fazendo com que muitas jovens Aranã viessem trabalhar nas casas das classes mais altas da capital. 

“Agora, temos os Puri, no rio Doce, na região de Aimorés, também no mesmo processo – até então, só se sabia dos Krenak nesse rio. Então, cada caso é um caso. E cada caso tem de ser único, mesmo”, conclui Baeta.

#monitore

As sementes das etnias indígenas brotam da terra

É importante ressaltar que o processo de reconhecimento étnico no Brasil segue os preceitos de autonomia e de autodeterminação dos povos, conforme a Constituição Federal brasileira de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989. De acordo com o site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Convenção inova ao instituir a autoidentidade como “critério subjetivo, mas fundamental, para a definição dos povos sujeito da Convenção, isto é, nenhum Estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou tribal que como tal ele próprio se reconheça”. E essa é uma garantia importante de que o ressurgimento de uma etnia ou sua preservação não estejam dependentes de uma avaliação externa aos próprios sujeitos que se reconhecem pertencentes a um povo.

Por isso, não existe um processo institucional de reconhecimento da existência de um povo ou etnia. Veja o que diz Aline Lopes Kayapó, Membra-Fundadora do Movimento Plurinacional Wayrakuna: “Uma vez o povo ressurgido, o Estado tem a obrigação de reconhecê-lo. Do contrário, estará incorrendo em vários crimes e estará contrário, inclusive, à Convenção 169 da OIT, do qual é signatário. É muita coisa que não avança porque os povos ainda estão perdendo um tempo tentando convencer a sociedade nacional que precisam de respeito, quando, na verdade, nós deveríamos estar apoiando esses povos para que eles reivindiquem outras questões.”

Pablo Camargos faz coro à fala da Aline. “Não há nenhum processo institucional para reconhecer um grupo étnico. Segundo a Convenção 169 da OIT, que foi ratificada no Brasil e, então, vale como lei, as pessoas se autorreconhecem como pertencentes a uma etnia, ao mesmo tempo em que são reconhecidos por aquele coletivo. Por exemplo: alguém que se reconhece como Maxakali e será reconhecido pela coletividade dos Maxakali à qual ele pertence. Isso acontece também nos processos coletivos de grupos indígenas, que se reconhecem pelos processos de etnogêneses, de migrações ou de retomadas, e são reconhecidos pelos demais indígenas, pela população do entorno e por outros segmentos sociais e políticos”, finaliza.

Uma vez que a semente de um povo originário brota da terra, ela transfere para a muda toda a memória da árvore-mãe, ainda que essa memória leve anos para se firmar no tronco. Tentar cortar essa árvore é atentar contra a terra que a gestou. Ser respeitoso com o processo de autorreconhecimento dos povos significa proteger o passado, o presente e o futuro dos habitantes originários deste território.

#aja

Entre árvores e sementes

Caso você presencie algum abuso ou violência contra indígenas, procure instituições como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que atua em diversas frentes. E se você conhece alguém que está em processo de resgate étnico, mas não sabe por onde seguir, indique a Associação Multiétnica Wika Kwara, que possui um grupo de trabalho específico para acolhimento e acompanhamento no processo de retomada.

Ao chegar até aqui, você já percebeu que o assunto é vasto e envolve múltiplas questões, como o autorreconhecimento, a viagem de volta, os conflitos, as vitórias. Você já deve ter entendido que, mesmo achando que no seu entorno não existem indígenas, pode ser que aí, bem perto, haja uma etnia prestes a ressurgir ou mesmo já em processo de etnogênese. Você com certeza habita entre árvores e sementes indígenas. 

No segundo episódio desta série, contaremos a história dos frutos de uma árvore botocuda que voltou a crescer na região de Ouro Preto: os Borum-Kren. Por isso, sugerimos alguns conteúdos para que o ambiente esteja acolhedor:

Filmes

O abraço da Serpente (2015) – Diretor: Ciro Guerra

Karamakate, outrora um poderoso xamã da Amazônia, é o último sobrevivente de seu povo, e agora vive em isolamento voluntário nas profundezas da selva. Sua vida sofre uma reviravolta quando chega ao seu esconderijo remoto Evan, um etnobotânico americano em busca da Yakruna, uma poderosa planta, capaz de ensinar a sonhar. Assista ao trailer:

Enterrem meu coração na curva do rio (2007) – Diretor: Yves Simoneau

Na década de 1880, após a derrota do Exército dos Estados Unidos na batalha de Little Bighorn, o governo americano continua a afastar os indígenas Sioux de suas terras. Em Washington D.C., o senador Henry Dawes introduz uma legislação para proteger os direitos dos nativos americanos. (Disponível na Prime Vídeo)

Livros/Textos

Geocídio e resgate dos “Botocudo” (Revista Estudos Avançados)

Entrevista com Ailton Krenak sobre as violências sofridas pelos Botocudos do rio Doce e seu processo de resgate e retomada. Por Marco Antônio Tavares Coelho.

Indígenas de Minas Gerais (Oiliam José) – Editora MP

O livro de Oiliam José, lançado em 1965, é um extenso documento sobre as etnias originárias do território mineiro, analisadas em seus aspectos sociais, políticos e etnológicos. Embora datado, ainda é utilizado como uma das referências para se compreender quem são os povos originários de Minas Gerais.

Povos indígenas em Minas Gerais (Cedefes)

Esse texto, produzido pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, traz dados atualizados sobre os povos originários em Minas Gerais. O site se dedica a reunir documentações sobre dois assuntos principais: a questão da terra e a questão indígena sobretudo em Minas Gerais.

Associação Kamuri

O site da Associação Kamuri oferece diversos materiais para download gratuito, aceitando também doações para a associação. Entre os materiais, está o livro “Organização social e crenças dos Botocudos do leste do Brasil”, de Curt Nimuendajú.

Documentários

Guerras do Brasil.doc – Diretor: Luiz Bolognesi

Documentário em cinco episódios, a produção desnuda alguns dos diversos conflitos brasileiros. No primeiro episódio, “Guerras da conquista”, o processo de colonização e a guerra contra os indígenas são discutidos. (Ficha Técnica!)

500 anos de resistência indígena, negra e popular (Cedefes)

Encontro realizado em 1991 com a presença de delegados de inúmeros povos das Américas, além de observadores e imprensa internacional. Mostra a força do Movimento Indígena Norte-Latinoamericano que hoje se articula como Movimento Continental de Resistência Indígena, Negra e Popular. Para se inspirar na luta dos povos tradicionais de Abya Yala – que é como os indígenas latinoamericanos chamam as Américas.

Museu

Exposição Línguas Indígenas no Museu da Língua Portuguesa 

A exposição busca mostrar outros pontos de vista sobre os territórios materiais e imateriais, histórias, memórias e identidades dos povos indígenas, trazendo à tona suas trajetórias de luta e resistência, assim como os cantos e encantos de suas culturas milenares. Em cartaz até 23 de abril de 2023.

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