Nova série do Lei.A faz um raio-x desse flagelo ambiental que se repete todos os anos no Brasil e no estado de Minas Gerais
Nesse 1º capítulo, fomos ouvir estudiosos e povos originários para entender o que há por trás dessa sombria “tradição” brasileira
Aproximadamente 44,5 milhões de campos de futebol. Esse é o tamanho da área devastada pelas queimadas ano passado em todo o Brasil, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Um resultado 86% maior que a destruição registrada em 2018. Crescimento refletido em todos os biomas brasileiros.
Embora a Amazônia tenha mais visibilidade midiática, o bioma mais afetado pelo fogo em 2019 foi o Pantanal, com aumento de 573% na área queimada. Em números absolutos, porém, o Cerrado continua, de longe, o ecossistema mais castigado: responde por quase 50% do total de queimadas do país.
Para entender as origens desse fenômeno socioambiental, e o porquê dos indicadores seguirem piorando no país, nós, do Lei.A, preparamos a série especial “Queimadas – A lei do fogo”. Lembrando que estamos exatamente na alta temporada delas.
Quais estragos elas causam nos ecossistemas? O que diz a lei? Como prevenir e atenuar a destruição causada pelo fogo? Nesse primeiro capítulo, levantamos a seguinte discussão: existe uma cultura do fogo no Brasil?
Ódio partidário: gasolina para o desmatamento e a queimada
O Brasil reduziu a área desmatada e queimada, de forma consistente, durante uma década (2004-2014). Para entender o que houve no meio do caminho, já que a destruição voltou a crescer exponencialmente, nós, do Lei.A, fomos ouvir o físico da Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão, escolhido pela revista Nature, em 2019, como um dos dez cientistas mais destacados do mundo.
Em agosto de 2019, Galvão protagonizou um embate público com o presidente Jair Bolsonaro, que pôs em xeque a confiabilidade dos dados do Inpe sobre queimadas. “A única coisa que o Inpe faz é colher dados, nada mais”, rebateu Galvão à época. Ele acabou sendo exonerado devido à defesa intransigente dos pressupostos técnicos e científicos do Instituto.

Fonte: Inpe
Por que fomos de país modelo em redução de desmatamento para o papel de vilão internacional? O ex-diretor do Inpe atribui o fato à descontinuidade de políticas públicas bem sucedidas, criadas por especialistas, como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
O PPCDAm foi estruturado para enfrentar as causas do desmatamento de forma integrada, do ordenamento fundiário e territorial ao monitoramento e controle ambiental, passando pelo fomento às atividades produtivas sustentáveis. Sua execução envolveu mais de uma dezena de ministérios.
“Quando pessoalmente questionei o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) por que o governo não o seguia, sua resposta foi: este é um plano elaborado por um governo de esquerda, que não tem mais validade agora”, relatou Galvão.
Evolução histórica da área desmatada na Amazônia, desde 1988, segundo o sistema PRODES, do Inpe (http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/).
Segundo Galvão, o resultado consolidado, esperado para 2020, será ainda pior. “Como já estão mostrando os dados recém divulgados do DETER (sistema de alerta desenvolvido pelo Inpe para subsidiar a ação dos órgãos de fiscalização), esperamos um desmatamento superior a 13 mil km2”, diz.
Por que falamos em desmatamento, se o assunto aqui é queimadas? Porque desmatamento e queimadas andam sempre juntos no Brasil. Se no Sudeste a queimada é feita para “limpar” (ou desmatar) o terreno, na Amazônia é o contrário: primeiro desmata-se e, depois, na estação seca, faz-se a queimada para “limpar” o terreno e extrair (ilegalmente) a madeira nobre, que é só superficialmente afetada pelo fogo.
Questionado sobre o aumento das queimadas em outros biomas, como o Cerrado, Ricardo Galvão foi na mesma direção: “Temos o Programa de Monitoramento Ambiental dos Biomas Brasileiros (PMABB), criado em novembro de 2015, que também não é seguido”, comentou.
Ele ressalta que mesmo antes de Ricardo Salles e Jair Bolsonaro, a questão da proteção das florestas deixou de ser defendida pelo governo federal. “Em 2015, já começou crescer o desmatamento lentamente. A presidente Dilma Rousseff já não era uma fã de questões ambientais, nós sabemos disso. Qual a razão? Não tomar a medidas necessárias, de coibir e aplicar as multas nos desmatamentos ilegais e queimadas. Isso foi crescendo, mas agora, tem se acentuado fortemente”, disse.
E a curva acelerada de agora, qual a razão? “Nós sabemos que o Governo Bolsonaro não enganou ninguém. Desde a campanha ele dizia que não acreditava em aquecimento global, que essa questão ambientalista era coisa de veganos, sempre desmerecendo isso daí”, relembrou.
Existe uma cultura do fogo no Brasil?
“A nossa narrativa sobre o fogo é também mitológica, não segue a mesma lógica da ocidental. Todo esse emaranhado de cosmovisão faz com que olhemos para o fogo resgatando as histórias de nossos antepassados: nas nossas narrativas (e de outros povos parentes) a onça era a dona desse elemento da natureza, até que ele foi roubado pelos humanos”.
O depoimento é do antropólogo e etnofotógrafo Edgar Kanayko, da etnia Xakriabá, povo do tronco linguístico macro-jê, que habita a margem esquerda do rio São Francisco, no município de São João das Missões, na região Norte de Minas Gerais.
Segundo ele, a partir dessa apropriação do fogo, os indígenas começaram a usá-lo no dia a dia das aldeias, para cozinhar alimentos e se aquecer com as chamas. “Daí em diante, esse elemento tão importante se fez parte do nosso mundo como uma espécie de remédio: ele aquece, protege, nos ajuda na plantação e na caça. Mas dependendo da dosagem e da intenção como ele chega, ele destrói”.
O povo Xakriabá, explica Kanayko, usa o fogo para a agricultura ao longo dos séculos. “Mas tudo que acontece na natureza, aqui, é feito depois que temos a permissão dela. A manipulação do fogo por nós, indígenas, não é diferente”. Na agricultura, por exemplo, os Xakriabás fazem abertura de pequenas clareiras para o plantio tradicional de roças (onde as chamas são postas). “Essa técnica é usada de forma alternada nos terrenos, para que eles não sejam danificados. É um método necessário tanto para novas plantações, como para provocar na terra a produção de novos nutrientes. Assim é possível plantar e colher tudo que o brasileiro conhece como alimento natural: feijão, abóbora, mandioca, melancia, batata…”.
O fogo também é importante nos rituais, os pajés o utilizam em processos de cura. “Não é à toa que nos reunimos ao redor dele. O fogo fascina e mantém a chama de nossa cultura acesa”.
“Tudo que acontece na natureza, aqui, é feito depois que temos a permissão dela. A manipulação do fogo por nós, indígenas, não é diferente”
Edgar Kanayko | antropólogo.

Créditos: Edgar Kanaykõ Xakriabá
Para o povo Kambiwá, etnia que habita a região de Serra Negra, em Pernambuco, e que não se enquadra em nenhum dos dois grandes troncos linguísticos dos índios brasileiros (macro-jê e tupi), o ‘uaraci’ é representado pelo sol, e o ‘toé’ é o fogo. Quem nos explicou foi a professora e socióloga Avelin Buniacá, descendente dos Kambiwá.
Segundo ela, o fogo sempre esteve entre nós, representando a morte ou a vida. “Quando nosso povo precisou escapar dos coronéis criadores de gado, deixando para trás a nossa Serra Negra, terra considerada a “mãe” da qual os filhos foram afastados – a Serra Negra constitui um sustentáculo da identidade étnica e cultural do povo Kambiwá – , o fogo era o elemento do medo. Os mais velhos trazem vários relatos de perseguição e morte e consequentemente fuga com sua famílias, induzido-nos a um movimento de diáspora indígena permanente e também o ocultamento da nossa identidade. Tendo, inclusive, a prática do Toré proibida e perseguida pela polícia. Somente em 1994, o povo kambiwá recebeu permissão dos órgãos para retornar à Serra Negra. Convertida em reserva natural”, explicou.
Os incêndios, diz Buniacá, eram feitos para expulsar os índios. Mas a própria natureza provia o socorro. Na fuga, muitos se refugiavam dentro de árvores como o pau-d’alho, que, segundo ela, é capaz de abrigar até doze pessoas. “Ali dentro, nas cavernas feitas de tronco de árvores, era possível se proteger da morte ao redor de pequenas fogueiras. O ser benigno e maligno está presente em um só elemento”.
O fogo também está presente no ‘toré’, que são os rituais. Segundo ela, as chamas são capazes de reunir os indivíduos emocionalmente, o que propicia a contação de histórias. “Ali também se dança e se encontra com o sagrado. No ‘toré’, dançamos em círculos, assim como é o círculo do fogo: criar, destruir, vida, morte, vida.”
“No ‘toré’, dançamos em círculos, assim como é o círculo do fogo: criar, destruir, vida, morte, vida”
Avelin Buniacá | socióloga
Quando o fogo vira crime?
A ação humana está por trás da maioria dos incêndios florestais no Brasil. A informação é do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais, que tem a atribuição legal de combater as grandes queimadas. Segundo o órgão, as principais causas de incêndios florestais no estado de Minas Gerais são:
A Associação Mineira de Defesa do Ambiente (Amda) possui brigadas profissionais de combate a incêndios florestais e realizou um levantamento referente ao ano de 2019 sobre as causas dos incêndios nas áreas sob sua atuação.
De acordo com o relatório de atividades Brigada Amda/Sindiextra, o vandalismo representa a maioria absoluta dos casos registrados, exigindo ações de educação para a prevenção de incêndios: “as atividades que envolvem educação da população para redução do número de ocorrências de incêndios florestais na região continuam sendo necessárias”.
O Incêndio criminoso, nosso velho conhecido
O ato criminoso de provocar incêndios florestais não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Em 1603, durante a unificação momentânea das coroas portuguesa e espanhola, passaram a vigorar no Brasil as “Ordenações Filipinas” (Código de Leis então vigente na Espanha), que já previam penas para quem colocasse fogo na vegetação.
Além de reparar o dano e sofrer com o açoite e venda de escravos, o criminoso ainda estava sujeito à prisão e o degredo para a África por dois anos.

Ordenações Filipinas Livro 5 tit. 86 – Disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1234.htm
Com o Brasil independente, em 1830, foi publicado no país o primeiro Código Criminal, ainda sob o reinado de dom Pedro I, mas nele não estava previsto nenhum crime relacionado a incêndio florestal. Em 1850, foi editada a Lei nº 601, que estabeleceu que aqueles que pusessem fogo em terras públicas ou de terceiros poderiam sofrer pena de dois a seis meses de prisão, multa e reparação do dano causado.
Mas a lei não se aplicava em caso de atos típicos de posse, como preparação da terra, aceiros, plantio e construção de benfeitorias. Até 1934, a criminalização das queimadas não teve o objetivo de proteger o meio ambiente, mas apenas a propriedade dos cidadãos.
A partir daquele ano, passou-se a exigir autorização para a prática do fogo, proibindo os proprietários de ateá-lo em suas propriedades, para qualquer finalidade, sem licença da autoridade florestal. As penas por crime de incêndio alcançavam até três anos de prisão e multa.
Na década de 1940, o Código Penal previu como crime causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem. Mas só a partir de 1965, com a edição do Código Florestal, considerou-se de interesse social a proteção da integridade da vegetação nativa, a prevenção, o combate e o controle do fogo.
O que diz a lei atual?
Atualmente, está em vigor a Lei nº 9.605/1998, a chamada Lei de Crimes Ambientais. De acordo com ela, provocar incêndio em mata ou floresta implica numa pena de prisão por dois a quatro anos e multa. Além disso, fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar incêndios implica em prisão de um a três anos e multa.
Por ser competência exclusiva da União legislar sobre direito penal, apenas leis federais podem definir o que é ou não um crime. Mesmo que a conduta de colocar fogo e causar incêndio não seja considerada crime, o cidadão poderá ser punido administrativamente pelos órgãos de fiscalização ambiental.
Em Minas Gerais, os fiscais das Secretarias de Meio Ambiente estadual e municipais, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros podem aplicar multas contra quem causa incêndio ou coloca fogo fora das condições legais.
Estão previstos no Decreto nº 47.383/2018 as seguintes infrações administrativas relacionadas ao fogo, todas consideradas graves ou gravíssimas, com os respectivos valores de multas (referência Ufemg a R$ 3,71/setembro de 2020):
Qual a dimensão do dano ambiental?
“A nossa espécie surge no mundo como uma espécie capaz de dominar o fogo, o que muda a relação do mundo com o fogo. Só que ela chega depois que essa relação já existe. Ela chega quando o fogo já selecionava há milhões de anos quais espécies iam habitar esses ambientes”.
A análise é do biólogo e pesquisador Leonardo Cotta, do grupo Bocaina Biologia da Conservação. Ele pesquisa em seu doutorado o efeito do fogo na região da Serra do Espinhaço pelo curso Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo ele, existem alguns ambientes do mundo que são naturalmente propícios ao fogo, e outros, não. O Cerrado é exemplo evolutivo do primeiro caso. “Já a Mata Atlântica e Caatinga não são propensos ao fogo. A Caatinga por causa do espaçamento dos indivíduos, e a Mata Atlântica por sua alta umidade”, explica.

Mapa com a divisão territorial de Minas por Bioma
“Esses ambientes que não têm fogo como parte da sua dinâmica natural, ao longo do tempo, não têm organismos selecionados para sobreviver a eventos de fogo. Por isso, uma queimada na Mata Atlântica e na Caatinga é extremamente severa, do ponto de vista da preservação da biodiversidade”, diz Cotta.
Essas espécies, segundo ele, não têm tempo evolutivo de resposta para se preservar em ambientes sujeitos ao incêndio. Ou seja, quando se queima uma área de floresta de Mata Atlântica, por exemplo, morrem praticamente todas as espécies.
“Muitos animais conseguem fugir, mas não todos. E outra coisa: fugir para onde? Quando se fala em Mata Atlântica, falamos de áreas naturais, que na verdade, são ilhas. Se a gente queima grande parte dessa área, os animais vão fugir para a área urbana, e eles não sobrevivem”, conclui.
Nós já falamos anteriormente sobre o desalento no Cerrado, o mais atingido pelas queimadas no Brasil, e que ocupa 54% do território de Minas Gerais. E vamos falar mais dele, que é o bioma mais maltratado pelos mineiros, no próximo capítulo da série.
O que mais vem por aí?
No segundo capítulo da série especial “Queimadas – A lei do fogo”, nós, do Lei.A, vamos fazer um mergulho na realidade de Minas Gerais. Como o poder público tem enfrentado o problema aqui? O que fazer para prevenir as queimadas? Como é o trabalho dos brigadistas, que lutam “corpo a corpo contra” o fogo? Vem com a gente.
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