Texto cria o paradoxal conceito de “mineração de utilidade pública” e usurpa prerrogativas dos municípios e da sociedade civil na gestão do território
De autoria de parlamentar mineira, relatório vai a voto dia 1º de dezembro e pode tramitar em rito acelerado na Câmara dos Deputados
Daqui a cinco dias, ou cerca de 100 horas, um grupo de deputados pode colocar em andamento um processo que mudará por completo as prioridades no Brasil em relação às suas reservas de água, de biodiversidade, de prioridades econômicas e até mesmo os poderes de prefeitos e governadores para tomarem decisões em relação às políticas públicas, como saúde, educação, segurança e defesa das fontes de vida de 210 milhões de pessoas.
E tudo isso a partir de um único texto, que, ao que tudo indica, sequer passará pela discussão técnica em comissões do Congresso Nacional. Se não houver nenhuma mudança de rumo, na próxima quarta-feira (10/12), o relatório sobre a proposta do novo Código da Mineração no Brasil, que mexe com todas essas prioridades listadas, será votado por um grupo de apenas 16 deputados.
O teor do relatório, que deve embasar o novo Código, se contrapõe a dispositivos elementares da Constituição de 1988 e cria conceitos jurídicos, no mínimo, heterodoxos. Por exemplo, torna a mineração uma atividade de “utilidade pública” e “essencial à vida”, portanto, detentora de prerrogativas especiais, quando sua natureza é eminentemente privada, comercial e lucrativa.
Acesse aqui a íntegra do relatório final da proposta novo Código da Mineração
O texto, todavia, é particularmente preocupante por suas repercussões nos dispositivos recém-criados pela nova Política Nacional de Segurança de Barragens. Soluções repisadas e catastróficas, como a autodeclaração e a fiscalização por amostragem, estão de volta à ordem do dia, como se as tragédias em Mariana e em Brumadinho não tivessem existido.

Com esse alerta feito por especialistas e pela falta de uma comunicação simples e didática, capaz de dar à sociedade subsídios para conhecer e monitorar algo que afetará tão diretamente a vida das pessoas, nós, do Lei.A, nos debruçamos sobre a origem do relatório que será votado em dezembro para tentar responder a uma pergunta simples:
Por que discutir um tema tão complexo e perigoso da forma como está sendo feito?

#conheça
Um cadáver tirado do armário
Na década passada, depois de dez anos em discussão, a proposta do novo Código da Mineração terminou em impasse. As tratativas em busca de um texto minimamente consensual, para substituir o Decreto Lei 227, vigente desde 1967, foram encerradas sem acordo. De concreto, surgiu a Lei 13.575/2017, que criou a Agência Nacional de Mineração (ANM).

Em 18 de junho de 2021, o presidente da Câmara Federal, deputado Arthur Lira (PP-AL), recriou o Grupo de Trabalho Código Mineração, a quem encarregou de elaborar uma proposta legislativa em 90 dias. O relatório final ficou a cargo da deputada federal mineira Greyce Elias (Podemos), que será votado na próxima quarta-feira (10/12).
Antes de mais nada: o que faz um Grupo de Trabalho?
Não existe previsão constitucional nem regimental para criação e funcionamento dos chamados Grupos de Trabalho (GT) segundo o Regimento Interno da Câmara dos Deputados Aplicado às Comissões, publicação da própria Câmara dos Deputados. Na prática, diz o manual, eles são utilizados para as mais diversas finalidades, “muitas vezes se sobrepondo ao funcionamento das comissões”.
Os Grupos de Trabalho não possuem competência para votar proposições legislativas e, “em geral”, as reuniões seguem as normas regimentais. Essa ausência de norma permite casuísmos que ferem o devido processo legislativo. O próprio manual da Câmara, em seu capítulo 2, página 100, afirma que a falta de previsão legal “pode levar ao questionamento sobre as decisões tomadas por esses colegiados”.

Mas o trâmite legislativo é apenas um aspecto de uma insegurança jurídica mais ampla e complexa. Como veremos, ao invés de aperfeiçoamentos, o relatório final do GT Código de Mineração abre frentes de conflitos em várias esferas simultaneamente: constitucional, federativa, intragovernamental, social e econômica.

Como não fazer uma discussão importante
Em nota divulgada em no dia 30 de junho de 2021, logo após o ato que recriou o GT Código da Mineração, o próprio Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), uma entidade privada que reúne empresas responsáveis por mais de 85% da produção mineral brasileira, afirmou que melhor seria deixar o Código como está.
“Rediscutir o Código de Mineração da forma como está posto não contribui para o desenvolvimento da mineração. Pelo contrário”. Segundo a entidade, a experiência e o desgaste do longo debate anterior trouxe insegurança ao setor, que depende de regras perenes e de longo prazo. “Quanto mais segurança e perenidade nas regras legais e infralegais o país oferecer, melhor”, diz o documento.

Se a recriação do Grupo de Trabalho foi recebida com ceticismo pela entidade que reúne as mineradoras, na sociedade civil não foi diferente. Basta dizer que questões como as alíquotas da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), os “royalties” do minério, e a exploração em terras indígenas, passaram ao largo das atuais discussões.
A “mineração de interesse social” (e suas consequências)
Em Nota Técnica publicada em 22/11/2021, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio do Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos, manifestou “profunda preocupação” com a revisão do Código da Mineração oriunda do GT instalado na Câmara dos Deputados. A proposta, para a ABA, ameaça o meio ambiente e os direitos de povos e comunidades tradicionais.
O fundamento jurídico que embasa as alterações propostas está previsto no Art. 1º, § 2º, que torna a mineração atividade “de utilidade pública, de interesse social, de interesse nacional e essencial à vida humana, na qual deverá sempre se observar a rigidez locacional das jazidas”. Tal “reconhecimento” torna a atividade merecedora de prioridades e detentora de novas prerrogativas e competências.
Por exemplo, o Art. 1º, § 3º, prevê que “o ordenamento territorial será elaborado de modo a prevenir que a expansão urbana inviabilize o aproveitamento mineral, assegurada a participação da Agência Nacional de Mineração – ANM durante sua elaboração”. Ou seja, o texto retira das municipalidades o poder de gerir seus próprios territórios.

Mas o texto vai além. Ele estabelece, como competência da ANM, a declaração de utilidade pública para fins de desapropriação das áreas necessárias à implantação dos projetos extrativos (Art.58-A).
“Tal declaração unilateral por parte da agência reguladora, sem a devida consulta e anuência de outros órgãos, significa a obliteração de outros interesses e necessidades do planejamento público e das próprias comunidades que habitam os territórios afetados”, diz a nota técnica da ABA.
Nós, do Lei.A, fomos ouvir as professoras Andréa Zhouri e Ana Flávia Moreira Santos, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e do Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

#monitore
Superpoderes da Agência Nacional de Mineração
Segundo a nota técnica da ABA, o relatório do GT Código da Mineração transfere o poder regulador do Estado ao setor privado ao concentrar atribuições na Agência Nacional de Mineração. Isso traz uma série de sobreposições de competências e conflitos jurisdicionais entre as próprias autarquias do Estado.
Seriam atribuições da agência, além da gestão de recursos minerários, a regulação sobre outorgas, a concessão de direitos minerários e a fiscalização das atividades, novas e múltiplas alçadas. Por exemplo, a criação de “áreas de bloqueio” (Art. 3 e 4) definidas como “resultantes de conflito de interesse entre outras atividades e a mineração.”
Noutras palavras, o texto sugere uma precedência à exploração minerária em detrimento de outras formas legítimas de apropriação do território, sobretudo as de interesse coletivo, como o abastecimento público de água, áreas de recarga hídrica ou de proteção ambiental.

Por outro lado, a criação de Unidades de Conservação, de áreas de proteção ambiental, tombamentos e outras demarcações que restrinjam a atividade minerária deverão incluir a participação da ANM e dos titulares de direitos minerários. Em caso de colisão com as funções legais de autarquias como ICMBio, Funai, Iphan, Incra, entre outros, caberá ao Ministério de Minas e Energia arbitrar.
Confira a análise das professoras Andréa Zhouri e Ana Flávia Moreira Santos, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Segurança de Barragens: de volta para o passado
O relatório do GT Código da Mineração traz questões problemáticas também na sensível área de segurança de barragens. A começar pelo Art. 14, § 5º, que prevê a dispensa de licenciamento para pesquisa mineral em situações definidas como “sem impactos ambientais significativos”, seja lá qual o parâmetro dado ao “significativo”.
Práticas comprovadamente danosas, como a autodeclaração e a fiscalização por amostragem (Art. 81), retornam à ordem do dia, com previsão expressa de ausência de responsabilidade do Poder Público em casos de imprecisão ou falsidade nas declarações. Também ficam institucionalizadas as autorizações automáticas por falta de manifestação da autoridade pública (Art. 30 e 97) dentro do prazo exigido.
Todavia, causa apreensão, em especial, a direção contrária à Política Nacional de Segurança de Barragens. O Artigo 39, § 1º, retarda a exigência da apresentação de informações sobre os riscos associados, uma vez que o Plano de Ação de Emergência de Barragem de Mineração (PAEMB) se torna mandatório apenas na fase imediatamente anterior às operações.
É por meio dele, e dos Planos de Ação de Emergência (PAE) apresentados ao órgão fiscalizador, que se tem o levantamento cadastral e o mapeamento georreferenciado das populações vulneráveis. Sem esses dados, fica impossível cumprir o Art. 18-A da Lei Nacional de Segurança de Barragens (Lei 14.066/2020), que interdita a “implantação de barragem de mineração cujos estudos de cenários de ruptura identificam a existência de comunidade na Zona de Autossalvamento”.
Confira a análise das professoras Andréa Zhouri e Ana Flávia Moreira Santos, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

#aja
Além dos retrocessos enumerados e insanáveis riscos jurídicos do relatório que pode subsidiar o novo Código da Mineração, a transferência de competências e a sobreposição de atribuições solapa toda a construção dos instrumentos de participação, escuta e controle social consagrados pela Constituição Federal de 1988.
Com todas as dificuldades, imperfeições e assimetrias, o atual modelo de participação por meio de conselhos, comitês, órgãos colegiados consultivos e deliberativos, somadas às limitações do modelo virtual adotado desde a pandemia (clique aqui e saiba mais), eles são espaços cruciais para dar legitimidade ao processo de tomada de decisão.
Qualquer solapamento das prerrogativas de estados, municípios e sociedade civil do processo consultivo e decisório atenta contra o dispositivo constitucional e o próprio fundamento do regime democrático.
Como anotou a Associação Brasileira de Antropologia, a minuta do novo Código da Mineração vai no sentido contrário ao que estabelece diretrizes do próprio Conselho Internacional de Mineração e Metais (ICMM) – organização fundada em 2001, e que se define como “dedicada a uma indústria de mineração e metais segura, justa e sustentável”.
A hora de mobilizar e articular as entidades da sociedade civil é agora. Faça sua parte! Ajude a sensibilizar a relatora quanto aos retrocessos ambientais contidos no texto final.
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