Votado em primeiro turno, o projeto de lei 3676/16, conhecido como “PL da Lama”, incorporou parte do texto do “Mar de Lama Nunca Mais”, proposto por iniciativa popular após o desastre de Mariana, mas excluiu os pontos mais importantes
Regimento interno da Assembleia Legislativa foi alterado e permitirá que a proposta, que ignora recomendações de ambientalistas, do Ministério Público, do Ibama e da ONU, seja votado em 2o turno na legislatura que se inicia sexta-feira
AJA: caminho para evitar o desvirtuamento da legislação será a pressão da população e da imprensa sobre os deputados estaduais para apresentarem emendas ou substitutivos, devolvendo os principais pontos do “Mar de Lama Nunca Mais” ao projeto de lei

Foto: Bruno Figueiredo/Lei.A
A comoção gerada após a catástrofe em Brumadinho, ocorrida em um empreendimento da Vale S/A, pode ter efeito contrário ao fortalecimento da legislação sobre as barragens de rejeitos no estado. É que tramita na Assembleia Legislativa de Minas Gerais uma proposta, já aprovada em primeiro turno, que no seu texto atual não protege as populações que vivem sob as barragens nem resguarda o meio ambiente em caso de acidente, negligência ou crime. Trata-se do projeto de lei 3676/2016, que ficou conhecido como “PL da Lama”.
Nesse momento, o clamor por justiça e por uma resposta à inércia dos deputados estaduais pode acabar sendo usado para que um “projeto de lei camaleão” (que se traveste de uma proposta que atende às questões humanitárias e ambientais) seja aprovado sem os pontos fundamentais defendidos pelo Ministério Público, Ibama, ONU e centenas de entidades da sociedade civil organizada.
O que está em jogo
O risco é que a comoção force a Assembleia Legislativa a dar uma resposta, e essa resposta só atenda aos interesses econômicos e não à população. Aprovar o “PL da Lama” sem a inclusão das prerrogativas do projeto de iniciativa popular “Mar de Lama Nunca Mais”, na visão de ambientalistas, equivale a uma nova covardia contra os mortos de Mariana e Brumadinho.
Na próxima sexta-feira (01/02), se inicia a nova legislatura. Será o momento de veículos de imprensa, sociedade civil organizada e a parcela dos deputados estaduais realmente dedicados a defender o interesse coletivo exporem ainda mais o caráter de “camaleão” do PL 3676/16.
O histórico dos caminhos e descaminhos do projeto de lei 3676/2016 pelos corredores da Assembleia Legislativa, e por que ele ficou conhecido como o “PL da Lama”, é o que esta reportagem do Lei.A vai retratar na linha do tempo detalhada abaixo.
O início
O nascimento do “PL da Lama” remonta à tragédia de Mariana, causado pelo colapso da barragem de Fundão em novembro de 2015, numa operação da Samarco Mineração.

Foto: Rogério Alves/TV Senado
O clamor provocado pelo mar de lama chegou ao plenário da Assembleia Legislativa. Dezenas de discursos exigiam a punição dos culpados, uma comissão extraordinária de barragens foi proposta para mudar a lei e houve, inclusive, um minuto de silêncio pelas vítimas de Mariana e pelo rio Doce. Pelos gabinetes, só se falava em CPI.
Mesmo que 19 dos 22 membros da Comissão Extraordinária de Barragens tivessem sido financiados por mineradoras (clique aqui), havia otimismo pela aprovação de uma legislação dura quanto à segurança das barragens de rejeitos. O ano de 2016 prenunciava mudança de rumos no licenciamento e na fiscalização, haja vista a indignação nacional e a solidariedade aos afetados pelo empreendimento da Samarco.
A iniciativa popular pela mudança
Em 6 de julho de 2016, foi protocolado projeto de lei 3695/2016, de iniciativa popular, com 56 mil assinaturas, fruto da campanha “Mar de Lama Nunca Mais”, do Ministério Público de Minas Gerais, que propunha o endurecimento das normas para barragens de rejeitos. Houve promessa de que ele teria os ritos de tramitação acelerados.
Para acessar o inteiro teor do documento, clique aqui. Em linhas gerais, pode-se dizer que a força do projeto de iniciativa popular se apoiava em três pontos fundamentais:
– a proibição da construção de barragens quando houver comunidades em zonas de autossalvamento (região abaixo da barragem em que, em caso de rompimento, não haverá tempo suficiente para que a população seja socorrida);
– a proibição da construção de barragens sempre que houver alternativas técnicas mais seguras para a disposição de rejeitos (disposição a seco, a filtragem dos rejeitos arenosos e o espessamento dos lamosos, por exemplo);
– a obrigação de depósito de caução para cobrir qualquer possível dano.
O primeiro desvirtuamento
Porém, um dia antes do projeto “Mar de Lama Nunca Mais” (PL 3695/16) ser protocolado na Assembleia Legislativa, os deputados da Comissão Extraordinária de Barragens entraram com o projeto de lei 3676/16, que um ano depois, passaria a se revelar como o “PL da Lama”.
Por meio de uma manobra regimental, o projeto de iniciativa popular “Mar de Lama Nunca Mais” foi apenas anexado ao 3676/16. O argumento era de “precedência”. O que isso significa? Que o de iniciativa popular teria entrado depois do projeto feito pelos deputados da Comissão. Foi a porta de entrada para o desvirtuamento do “Mar de Lama Nunca Mais” e o abafamento das suas três principais medidas propostas.
Surgido da indignação popular, o projeto “Mar de Lama Nunca Mais” ficou à reboque do recém-nascido “PL da Lama”, gestado na Comissão Extraordinária.
O meio
O que antes era apoio irrestrito à mudança na lei passou a ser relativizado. Durante os debates nas comissões começaram a surgir, inclusive, algumas ‘condições’.
Em agosto de 2017, quando a Samarco apresentou seu plano de reparação, Gil Pereira (PP), da Comissão de Minas e Energia, ressaltou que a empresa tinha interesse de resolver o que chamou de ‘pendências’. “Eles reconheceram seus erros e demostraram que querem voltar a operar, mas com segurança”, relativizou.
Nasce o camaleão: o PL da lama
Pegando carona no apoio popular à campanha “Mar de Lama Nunca Mais”, o PL 3676/2016 foi votado e aprovado em primeiro turno no dia 12 de dezembro de 2017, mas o grosso das propostas de iniciativa popular já havia sido descartado pelos deputados. Clique aqui e aqui para conhecer a íntegra das duas propostas.
Qual a diferença entre os dois projetos de Lei?
Omisso quanto à defesa dos atingidos pelos impactos da mineração, e segundo ambientalistas, atrelado aos interesses econômicos das mineradoras, o 3676/2016 já não atendia seus propósitos originários, passando a ser conhecido como o “PL da Lama”, o projeto de lei camaleão.
Sopro de pressão e esperança
Sob protestos de entidades da sociedade civil, uma audiência pública rediscutiu os termos do projeto. Ficou acertado que um novo texto, a ser elaborado com apoio do Ministério Público de Minas Gerais, Ibama, e apoiadores do movimento “Mar de Lama Nunca Mais” seria proposto à Comissão de Minas e Energia.
Mas o novo texto, PL 5316/2018 (clique aqui), do deputado João Vitor Xavier (PSDB), foi derrotado por três votos a um na Comissão. Os deputados Tadeuzinho (MDB), Thiago Cota (MDB) e Gil Pereira (PP) alegaram que o texto inviabilizaria a atividade minerária em Minas Gerais – e derrubaram a proposição.
A ONU alertou
Em visita às cidades de Mariana e Barra Longa, atingidas pela lama da Samarco, o diretor executivo da ONU Meio Ambiente, Erik Solheim, defendeu que a segurança ambiental e humana deveria ser priorizada em “todos os aspectos das operações de mineração”.
A agência aproveitou a ocasião para divulgar o documento “Mine Tailing Storage: Safety is no Accident”, principal publicação da Organização das Nações Unidas para segurança de barragens e disposição de rejeitos no mundo. (clique aqui e leia na íntegra)
A principal recomendação é que “reguladores, indústrias e comunidades devem adotar um objetivo comum de falha zero para estruturas de disposição de rejeitos em que atributos de segurança sejam avaliados separadamente de considerações econômicas, sendo que o custo não deve ser o fator determinante”.
A recomendação da ONU vai diretamente contra o artigo 6º do “PL da Lama”, que possibilita às empresas alegarem “inviabilidade econômica” para não serem obrigadas a utilizar técnicas alternativas às tradicionais barragens.
É o fim?
Desde então, uma pressão de entidades ambientalistas, Ministério Público e Ibama impediu o avanço do “PL da Lama” na Comissão de Assuntos Econômicos, penúltimo capítulo antes da aprovação final em plenário.
A esta altura, porém, já estava claro que não havia interesse em aprovar nem mesmo o projeto desfigurado. Em reunião na primeira semana de dezembro de 2018, onde Ibama e o Ministério Público de Minas Gerais exigiram a revisão do texto, os deputados João Magalhães (MDB) e Rogério Correia (PT) assumiram o compromisso de incluir os três pontos fundamentais do “Mar de Lama Nunca Mais” no “PL da Lama” (clique aqui).
Tudo não passou de jogo de cena. A despeito de todo o sofrimento padecido por Mariana, quando 19 pessoas morreram soterradas na lama, a legislatura chegou ao fim e os deputados saíram de férias sem mexer na lei.
O perigo do novo regimento
Ao menos, como prêmio de consolação, o “PL da Lama” seria engavetado e retirado de tramitação. Afinal, os projetos que não se tornavam norma jurídica ao final da legislatura em que foram propostos eram arquivados.
Porém, uma mudança no regimento interno da Assembleia alterou as regras de arquivamento das proposições. Agora, um projeto como o “PL da Lama” não precisa mais ser reapresentado nem rediscutido. Ele continua a tramitar do ponto onde parou.
Não só ele pode ter a votação concluída, em 2o turno, por deputados que não a propuseram nem a debateram, como também obstrui a tramitação de qualquer nova proposição de conteúdo similar, que teria de ser anexado a ele.
AJA: fique alerta ao camaleão
Não foi por falta de alertas dos ambientalistas que a lama tomou Brumadinho. A demora da lei, somada ao sucateamento dos órgãos licenciadores e ao aparelhamento dos conselhos pelas mineradoras armou a bomba relógio cujas consequências o mundo inteiro agora condena.
O risco, nesse momento de dor, é que a comoção force a Assembleia Legislativa a dar uma resposta, e essa resposta não atenda o interesse da população. Aprovar o “PL da Lama” sem a inclusão das prerrogativas do projeto de iniciativa popular “Mar de Lama Nunca Mais” equivale a uma segunda covardia contra os mortos de Mariana e Brumadinho.
Na próxima sexta-feira (01/02), se inicia a nova legislatura. Será o momento de veículos de imprensa, sociedade civil organizada e parte dos deputados estaduais exporem ainda mais o caráter de “camaleão” do PL 3676/16.
No segundo momento, monitorar a tramitação da nova legislação na Assembleia Legislativa e trabalhar para que texto sobre segurança de barragens de rejeitos em Minas Gerais seja verdadeiramente em prol da defesa do meio ambiente e da vida.
Comissão de Administração Pública
Nos primeiros dias da nova legislatura, serão designados os deputados para a Comissão de Administração Pública e nela, um relator para o “PL da Lama”. Acompanhe, monitore e aja.