Desde Mariana (2015), novas e importantes leis entraram em vigor, mas as narrativas de desamparo
seguem como antes. O que não está funcionando?
Especialistas apontam o controle da informação sobre deslocados e a omissão deliberada
do Estado brasileiro como combustível para a continuação das violências
Em dezembro de 2019, a Agência Nacional de Águas (ANA) divulgou um levantamento segundo o qual 3,5 milhões de brasileiros viviam em cidades sob ameaça de barragens de rejeito de minério precárias e inseguras, às vezes sem informação técnica ou responsável conhecido. Mas ao invés de desativá-las, como previsto pela legislação mineira, foram ativadas centenas de sirenes. Se em Mariana e em Brumadinho elas de nada adiantaram, a muitos, com certeza, elas têm agora adoecido.
Neste segundo episódio da série sobre “Deslocados Ambientais”, nós, do Lei.A Observatório, começamos por tentar contar quantos são os deslocados da mineração em Minas, missão que se revelou impossível. Lei.A buscou órgãos públicos e mineradoras para saber os números oficiais de deslocados por riscos em barragens, mas ninguém informou. As organizações da sociedade civil, que atuam na ponta, tentam responder, já que o Poder Público não o faz.
A falta de transparência torna possível presumir que tipo de amparo essas pessoas têm recebido. Como vimos no primeiro episódio da série (clique aqui e reLei.A), cabe ao Estado garantir as proteções e direitos fundamentais previstos na Carta de 1988. Eles não deixaram o território brasileiro e deveriam ser reconhecidos como migrantes forçados devido a catástrofes naturais – como o Brasil acertadamente faz com estrangeiros em situação similar que aqui chegam em busca de acolhimento.
Dizer que nada mudou em Minas Gerais, desde as duas grandes catástrofes, não é verdade. Leis rígidas e bem formuladas, como a Política Estadual de Atingidos por Barragens (Peab), entraram em vigor. A Lei Mar de Lama Nunca Mais, novo marco regulatório de segurança de barragens, serviu de modelo para o marco nacional, aprovado quase dois anos depois pelo Congresso Nacional. Por que as proteções então não se efetivam?
No episódio de hoje, você conhecerá melhor essa condição de deslocado pela mineração, sua invisibilidade e desamparo legal. A violência do modelo de desenvolvimento, o controle da informação e a “cegueira deliberada” do Estado são apontados pelos especialistas ouvidos pelo Lei.A como fontes de subtração de direitos de enormes contingentes populacionais – a maior parte vulneráveis.
A saga dos deslocados ambientais da mineração em busca de alguma saída é o tema de hoje. #Conheça #Monitore #Aja
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Nada mudou?

Quando o desastre de Mariana (2015) completou seis anos, em novembro passado, as comunidades de Bento Rodrigues, localidade varrida pela lama, ainda não tinham sido reassentadas. A capela de São Bento, padroeira do povoado, foi destruída e segue sem plano de reconstrução. O mesmo se dá em Paracatu de Baixo, cujos espaços de lazer, religiosidade e serviços públicos eram utilizados pelas populações de Paracatu de Cima, de Borba e de Pedras.
Como as relações comunitárias e de pertencimento, o desastre econômico também é difícil de contornar. No distrito de Camargos, a ponte da Estrada Real foi destruída, isolando-o. Em Ponte do Gama ainda falta água; nas áreas agrícolas de Borba e de Pedras, a terra segue contaminada; em Campinas, os problemas de acesso, transporte e telecomunicações seguem crônicos. Ninguém sabe quando e se serão resolvidos.
Se em Mariana (2015) está assim, seis anos depois, como estão os deslocados do último verão? As sirenes expulsaram de casa, sob o risco iminente de ruptura em barragens precárias, comunidades inteiras em diversas localidades de Minas, como Barão de Cocais, Ouro Preto, Nova Lima, entre outros. Antes de perguntar os “por ques”, é preciso conhecer o contexto histórico desse modelo de desenvolvimento, que segue alimentando os eventos e o desamparo.

A lógica do “desenvolvimento” pela violência
“A lógica do projeto desenvolvimento segue, de alguma forma, a lógica da colonização. É a apropriação do território, do espaço do outro; é a anulação daqueles que vivem nesses territórios, a subtração do modo de vida. A dívida que nós temos com esses povos é histórica e continua sendo perpetuada. Se antes era chamada de colonização, agora é chamada de desenvolvimento”, nos diz a professora Andréa Zhouri, do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), da UFMG, e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
A defesa desses grandes projetos, segundo Zhouri, se vale da ideia de que vão trazer empregos, riquezas e desenvolvimento. Logo, a população aparece como a razão legitimadora, o “meio” e o “fim”, desses projetos. Mas os benefícios, como se sabe, são restritos, enquanto o ônus fica para a maioria – a começar pelos grupos mais vulneráveis, historicamente fragilizados. Confira a explanação da professora Andréa Zhouri, da UFMG.

Atingidos, deslocados, deslocados in situ
Logo depois do desastre da Vale, em Brumadinho (2019), os números de “atingidos” divulgados chegavam a quase 30 mil pessoas. Se somado aos da Samarco, em Mariana (2015), onde 62 milhões de metros cúbicos de lama contaminada, ou 25 mil piscinas olímpicas, cruzaram 230 municípios mineiros, chegando à foz do rio Doce, no oceano Atlântico, a cifra subia para a casa das centenas de milhares. Porém, esses dados foram minguando com o rolar dos desdobramentos.
No primeiro episódio da série vimos que, em eventos de deslocamentos, como os de Maceió, envolvendo a petroquímica Braskem, ou na Cidade dos Meninos, quando uma fábrica de venenos foi abandonada pelo Governo Federal, há uma permanente disputa sobre o número de deslocados. As comunidades atingidas, via de regra, afirmam que o escopo do dano é maior que o delimitado, enquanto os empreendedores lutam para circunscrever ao máximo o perímetro de sua influência.

Sob as barragens de mineração, o caso é idêntico. Segundo Andréa Zhouri, a identificação dos deslocados é complexa, pois os grupos de atingidos acabam divididos arbitrariamente em subgrupos de vários “tipos”. A remoção forçada é o “evento” mais visível, mas há aqueles quase invisíveis, os chamados deslocados in situ, que não são considerados ou reconhecidos pelo Estado ou pelas empresas.
Por definição, deslocados in situ são os que permanecem, ainda sob risco, convivendo com os processos de alteração ambiental, cuja situação social foi completamente transtornada. Se a mensuração deles é difícil, pelo próprio não reconhecimento de sua condição, a contagem dos removidos de casa, por ser mais restritiva, deveria estar acessível, mas não está – como veremos adiante. Esse controle da informação é um primeiro indício de que o processo terá pouca chance de ser transparente.
Saiba mais sobre essa “economia das visibilidades” e sobre o controle da informação sobre essas populações na explicação da professora Andréa Zhouri, do Gesta/UFMG.
Novas Leis, velhos problemas?
Ainda sob o choque do desastre de Mariana (2015), a Assembleia Legislativa de Minas Gerais criou uma Comissão Extraordinária de Barragens, da qual surgiram três propostas em resposta à indignação da sociedade civil: a Lei Mar de Lama Nunca Mais, novo marco estadual de segurança de barragens; o PL 3677/2016 (transformado na Lei Estadual 22.796/2017), que aumentava as receitas aos órgãos ambientais do estado; e a Política Estadual para Atingidos por Barragens (Peab).
O PL 3677/2016, o primeiro aprovado, ficou conhecido como “Lei Frankenstein”. Ela nasceu viciada e tem tido uma vida difícil. O PL previa a destinação de 100% da TRFM (taxa minerária) aos órgãos ambientais, mas teve embutido um jabuti que abriu a Estação Ecológica de Arêdes, Unidade de Conservação de Proteção Integral, à exploração minerária – enfim sustado, liminarmente, após ação do Ministério Público de Minas Gerais.
Os recursos nunca foram destinados, no percentual previsto, aos órgãos de fiscalização ambiental, sendo utilizado para outros fins – embora, para isso, deveria haver autorização prévia da ALMG, que não houve. A Lei Mar de Lama Nunca Mais, travada no parlamento até o desastre de Brumadinho (2019), foi aprovada há três anos, mas ainda não foi totalmente regulamentada pelo Executivo mineiro. Atualmente, ela passa por um teste de fogo: o descumprimento, ao final do prazo estabelecido, da desativação das barragens a montante.

A Política Estadual para Atingidos por Barragens (Peab)
A última das leis aprovadas, a Lei 23.795/2021, que criou a Peab, só ocorreu em dezembro de 2020, após a finalização da Comissão Parlamentar de Inquérito, da ALMG, sobre as responsabilidades do rompimento da barragem de rejeito da mina do Feijão, da Vale, em Brumadinho.
A Lei determina que o Estado prestará Assistência Social aos atingidos por barragens, abrangendo ações anteriores, concomitantes e posteriores à construção, à operação, à ampliação ou à manutenção de barragens.

Por “região afetada” entende-se a que abrange o total das áreas em que se constatar, direta ou indiretamente, impactos socioeconômicos, culturais ou ambientais devido à atividade. O texto ainda especifica os modos como os prejuízos podem se dar, desde perda de casas e terrenos até a inutilização de áreas pesqueiras, bem como prejuízos à qualidade de vida e à saúde. Entre os direitos, está o direito à informação.

Atingidos e deslocados: conceitos em disputa

A eficácia da Peab ainda será posta à prova. Atualmente, a dinâmica de invisibilidade e de desamparo dos deslocados da mineração é similar à dos retirantes da seca ou dos desabrigados pelas chuvas. Segundo Andréa Zhouri, os empreendimentos, e mesmo o Estado, consideram como atingidos apenas as populações “na calha da lama”, separando os demais por categorias arbitrárias, como atingidos “diretos” e “indiretos”.
“Não é uma identificação efetivamente por meio de uma avaliação das relações, daquilo que realmente acontece nos territórios dessas comunidades”, diz Zhouri. “Você contabiliza propriedades que estão na calha da lama, retira aquele grupo e é, ao fim e ao cabo, um número muito mais reduzido daqueles efetivamente afetados, atingidos por esses processos”.
Segundo a estudiosa, a definição de “deslocado” ou de “atingido” está em disputa na sociedade. “Não é uma definição objetiva”. Confira:
#Monitore
Foto: Lei.A Observatório
Deslocados da Mineração: a agenda ignorada
Enquanto as centenas de sirenes espalhadas por Minas Gerais tocam por comunidades inteiras a cada chuva mais forte, quando as estruturas, de tão precárias, não podem mais ter a segurança garantida, as pessoas vão saindo. Sem saber para onde, quando e se deverão voltar, e onde poderão recomeçar suas vidas. Caso discorde dos termos ou condições oferecidas na remoção, a quem reclamar? Como buscar o pleno gozo dos direitos, sobretudo na situação de emergência?
Segundo a Defesa Civil do Estado de Minas Gerais, a remoção ocorre quando “constatado e declarado risco iminente pelo empreendedor ou pelo órgão fiscalizador. Tendo como base essa informação, as famílias são retiradas pelos órgãos de segurança e municipais, e levadas a moradias provisórias ou abrigos”. Quando a evacuação é preventiva, diz o órgão, são feitos os mesmos procedimentos, porém, com menor grau de urgência.
Agora, se uma família não quiser ser removida, em situação de risco iminente, a Defesa Civil explica que pode ser empregado o uso moderado da força, amparado pela Lei Federal 12.608/2012, bem como pelo artigo quinto da Constituição Federal. Uma vez declarado risco iminente, o status do local só poderá ser alterado via laudo técnico do empreendedor e parecer favorável do órgão fiscalizador.
Afinal, quantos são os deslocados?

Nós, do Lei.A, bem que tentamos descobrir o número, mas não obtivemos respostas. Procurada, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) respondeu que “Deslocamentos populacionais por causas ambientais são feitos pela Defesa Civil. A Feam cuida da parte das estruturas e das questões ambientais”. Questionada, a Defesa Civil respondeu que “Os dados solicitados são de responsabilidade dos órgãos de proteção e defesa civil municipais, bem como das secretarias municipais de assistência social”.
Por sua vez, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, a quem as municipais estão submetidas, foi questionada, mas não respondeu. A reportagem do Lei.A também procurou a Fundação Renova, responsável pelo processo de reparação do desastre da Samarco, em Mariana (2015), que também não respondeu. Por sua vez, quando questionada, a Vale ofereceu o endereço eletrônico www.vale.com/reparacao, onde se “encontra todas as informações públicas do trabalho de reparação”.

No site, a Vale oferece informações sobre removidos em aba particular, onde estão informações sobre territórios evacuados nos municípios de Barão de Cocais, Nova Lima, Itabirito e Ouro Preto. Apenas sobre Cocais a empresa informa pagar o aluguel de 156 famílias da Zona de Autossalvamento (ZAS), bem como atendimento médico e psicossocial. As famílias evacuadas receberam, até dezembro de 2020, segundo a Vale, auxílio mensal de um salário mínimo por adulto, 50% para adolescente e 25% para crianças.
Para os demais municípios não há informação objetiva, nem números de deslocados e acompanhados, mas seletas de press releases institucionais e de relações públicas – alguns deles, aliás, notáveis, como o anúncio da “nova melodia” da sirenes em Nova Lima, ou a campanha para “sensibilizar a população” sobre os riscos em áreas operacionais da empresa.
Sobre a Fundação Renova, responsável pelos projetos de reparação do desastre da Samarco, em Mariana (2015), em seu portal há a informação segundo a qual, atualmente, 420 famílias participam de projetos de reassentamento. Em Gesteira, foram reassentadas 28 núcleos familiares no modelo de reassentamento familiar, sendo que 18 delas já possuem o imóvel em seu nome.
Dá uma mão aí?

Já que nem empresas e Estado fornecem esses números, o Lei.A procurou Luís Paulo Siqueira, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), entidade da sociedade civil que atua na organização das comunidades atingidas. A missão? Nos ajudar a estimar o número de pessoas deslocadas de suas casas pela mineração naqueles municípios considerados mais críticos, ou onde há deslocamentos ocorrendo nesse momento. Vamos fazer as contas? Pegue a calculadora.
Em Barão de Cocais estão as barragens Sul Superior e a barragem Laranjeiras, ambas da Vale. A Sul Superior, da mina Gongo Soco (nível 3 de segurança, isto é, risco iminente, com moradores obrigados a sair), 156 famílias foram removidas. Na de Laranjeiras (de nível 2, quando há risco e a retirada dos moradores é recomendável), saíram cerca de 15 famílias. No total, algo em torno de 700 pessoas em Cocais.
A barragem de Serra Azul, em Itatiaiuçu, pertencente a ArcelorMittal, atualmente em nível 2 de segurança, é outra onde algo em torno de 200 moradores tiveram de deixar a área de Autossalvamento (ZAS) sob risco de colapso da estrutura.
Em Ouro Preto, onde concentram-se uma série de barragens em nível de emergência, como Forquilha I, II e III (as primeiras em nível 2 e a última em nível 3), cerca de 25 pessoas tiveram de ser removidas. Na barragem de Doutor (nível 1), no distrito de Antônio Pereira, já foram removidas cerca de 700.
Em Conceição do Mato Dentro, as chamadas “barragens fantasmas”, isto é, não cadastradas previamente e desconhecidas do poder público, já afastaram cerca de 250 pessoas nos distritos de Passa Sete e Água Quente.
Nova Lima abriga dois grupos de barragens em níveis críticos, B3/B4 (nível 3) e Capitão do Mato (nível 2), ambas da Vale. Cerca de 200 pessoas foram removidas.
“Se eu tivesse que citar uma estimativa, diria que entre 1,5 mil e 2 mil pessoas”, diz Luís Paulo, do MAM. Essas estimativas dizem respeito apenas a esses cinco municípios, onde as sirenes seguem tocando suas “melodias” ao menor sinal de chuva. No total, Minas Gerais possui 45 barragens construídas pelo método a montante, sendo que 31 delas estão, em algum grau, em nível de emergência. Fica a pergunta: esses dados não deveriam ser públicos e acessíveis?
Os deslocados, por eles mesmos

A.P.M, 48 anos, morador da comunidade do Socorro, em Barão de Cocais.
No dia 8 de fevereiro de 2019, fomos acordados de madrugada com o aviso de que devíamos deixar nossas casas porque a barragem da Vale poderia se romper. Não tivemos tempo de juntar nada, e fomos todos despejados em um hotel em Barão de Cocais. A comunidade inteira. Éramos umas 500 pessoas.
Aquilo ali era o início de um pesadelo, porque ficamos quatro meses morando em um hotel, dormindo todos da família em um mesmo quarto, com hora para tomar café da manhã, com hora para almoçar e jantar, tendo que receber doações de roupas e tudo mais, porque nem isso a gente pôde buscar em casa.
Depois, nos colocaram em casas ruins, com goteiras, pequenas, cheias de defeitos, como se qualquer lugar fosse suficiente para abrigar a gente. Vieram dizer que demoraria três anos o descomissionamento da barragem, e que depois disso poderíamos voltar. Mas isso é mentira. A barragem nunca se rompeu e já nos deram um novo prazo para o descomissionamento: 2029.
Eu me recuso a vender meu terreno e vou lutar até o fim para ocupar de novo minha terra, para voltar para minha casa, onde tenho quintal, horta e de onde avisto a igreja de mais de 300 anos que abençoa minha comunidade. São três anos vendo meus vizinhos, meus amigos, adoecendo e tendo a vida paralisada por uma violência como esta.

A.S.E., 33 anos, moradora de Macacos, em Nova Lima.
Cheguei pra morar em Macacos em 2015, minha filha mais nova tinha três meses. Não dava mais para ficar morando em Porto Seguro com meu marido trabalhando aqui. Lembro como se fosse ontem o barulho ensurdecedor da sirene tocando na cidade.
Era sábado e chovia muito, peguei meus três meninos e meu marido e saímos correndo de casa. Foi desesperador. Uma amiga nos acolheu em sua casa durante o fim de semana, na segunda-feira a VALE colocou a gente num hotel em Belo Horizonte, passamos por dois hotéis, e foi horrível.
Éramos humilhados pelos funcionários, até talher diferente dos outros hóspedes a gente tinha que usar. Tem três anos que voltamos para Macacos. Hoje moramos na Pousada Vilarejo, eu, meu marido, meu filho Victor, de 14 anos, o Carlos, de 10 anos, e a Maria Flor, de 07 anos. Hoje nós não temos nada além de roupas.
Se a VALE colocar a gente numa casa não tenho nem cama pra dormir. Isso é triste demais. Desde que precisei sair correndo de casa, nunca mais voltei. Não dou conta. Estou depressiva. Já tentei me matar várias vezes, algumas na frente dos meus filhos. Hoje, eu só quero voltar a ter a vida que tinha antes disso tudo acontecer. Quero voltar a trabalhar, voltar com a minha rotina do jeito que era.

Sem lugar na terra: a questão indígena
Grupo Pataxó Hãhãhãe, década de 1980. Foto: Hermano Penna.
“Minas está derretendo, e todo mundo se pergunta o por quê. É cidade histórica desabando, é estrada se acabando, e todo mundo culpando a natureza, né?”, nos diz Haroldo Heleno, coordenador da regional Leste do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), para quem o estado tornou-se um “queijo suíço”. Atingidos pelos desastres de Mariana e de Brumadinho, e novamente deslocados pelas chuvas, a situação dos grupos indígenas não poderia ser mais precária.
Ao menos uma pequena vitória foi comemorada recentemente. Em 16 de fevereiro, a Justiça Federal determinou que a Vale apresentasse, em cinco dias, um plano de realocação temporária da comunidade Pataxó e Pataxó Hãhãhãe. O pedido de Tutela de Urgência, que inclui o pagamento mensal para instalação e manutenção das famílias indígenas realocadas, foi requerido pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU).
O Lei.A ouviu Haroldo Heleno, do Cimi, antes da decisão. Saiba sob que condições estavam vivendo esse grupos.
Em situação de vulnerabilidade pela destruição do habitat, do qual dependia sua subsistência, a aldeia Naô Xohã foi severamente castigada de novo, em 8 de janeiro de 2022, pelas fortes chuvas, que agravaram a situação de desamparo dos indígenas, obrigados a se deixar o local, às margens do rio Paraopeba, e a abrigar-se em albergues do município de Brumadinho.
Segundo a decisão, “é possível inferir-se que a presença de metais pesados nas águas do Rio Paraopeba ainda se faz presente em níveis superiores ao limite legal, notadamente no período mais recente, em que as chuvas que atingiram a região provocaram o revolvimento do rejeito presente na calha do rio – e, consequentemente, presente na água que atingiu a aldeia”.

A juíza determinou ainda que fossem respeitados os direitos à consulta livre, prévia e informada e à participação no processo de escolha do local, incluindo as que foram deslocadas em momento anterior ao alagamento da aldeia Naô Xohã, até que seja decidido a realocação definitiva da comunidade.
“Existe ainda um muro invisível separando os povos indígenas”, nos diz Haroldo. Segundo ele, a situação é idêntica à de grupos deslocados pelo desastre anterior, o da Samarco, em Mariana (2015), quando o borum, o rio Doce, sagrado para os Krenak, teve sua inteira extensão atingida pelas 25 mil piscinas olímpicas de rejeito tóxico da Samarco. No caso dos Krenak, nos diz Haroldo, sequer há um dado preciso sobre as famílias deslocadas, uma vez que todos viviam, de algum modo, próximos às margens do borum.
O que muda na vida desses cidadãos brasileiros, historicamente vulnerabilizados? “Muda tudo”, no diz Haroldo. Segundo ele, não bastasse a destruição ambiental e o desterro, ainda há a “via-crúcis” indígena em busca de reparação. Confira.
#Aja
“O som emitido será o de uma música clássica”, informavam os jornais locais, no final de 2020, sobre a alteração da “melodia” das sirenes utilizadas nos ensaios da orquestra em Nova Lima, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Sem dúvida, Mozart e Beethoven são mais agradáveis que os velhos alarmes anteriores, do tipo usado pelas cidades sob bombardeio na 2a Guerra Mundial. O que pensar do cuidado e do respeito com a aflição das pessoas?
No próximo e último episódio da série especial, o Lei.A levanta uma questão que não precisa de microscópio para ser observada. Está na cara: as populações etno-raciais são as que mais sofrem com os conflitos ambientais no Brasil e no mundo. E você? O que sabe sobre Racismo Ambiental? Na terceira parte da reportagem sobre Deslocados Ambientais, o que significa o conceito e por que passou da hora de discuti-lo seriamente.
#Conheça #Monitore #Aja