Especialista em Direito Ambiental explica ações apelidadas de “Pacote Verde”, prestes a serem julgadas pelo Superior Tribunal Federal (STF)
Ações são relativas a uma série de atos e omissões do Governo Federal relacionados a retrocessos e impedidos de avanços na área ambiental

A expressão popular “passar a boiada” ficou ainda mais conhecida a partir de 2020, após a divulgação dos registros de uma reunião ministerial com o presidente da República, em Brasília. No encontro, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou tal expressão para sugerir que o Poder Executivo aproveitasse o momento em que as atenções da população e da imprensa estavam voltadas para a pandemia de Covid-19 para alterar, sem a devida percepção da sociedade e análise da mídia, regras, decretos, normativas e leis ambientais que poderiam ser questionadas na Justiça.
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A constante desregulamentação de políticas ambientais promovidas pelo governo federal nos últimos anos tem gerado reação de governos de outros países, instituições que lutam pela defesa do meio ambiente, alguns partidos políticos e por alguns integrantes da Procuradoria Geral da República (PGR), que ajuizaram ações para serem analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O que é o STF? O que ele faz?

Neste momento, existem sete processos esperando julgamento dos ministros do STF. São eles que compõem o tal “Pacote Verde”. São questões delicadíssimas que dizem respeito a temas como a forma como o Brasil irá se comprometer com a proteção da Amazônia; como o país irá se responsabilizar com a crise climática e se o governo irá realmente respeitar as políticas ambientais previstas na Constituição Federal.

O “Pacote Verde” começou a ser votado no dia 6 de abril de 2022, mas houve pedido de vista por parte do ministro André Mendonça. Trata-se de uma prerrogativa dos integrantes do STF para que tenham mais tempo para analisar os fatos.
Como a previsão é de que a votação volte à pauta do STF nesta semana, nós, do Lei.A, convidamos Fernanda Mendes, advogada especializada em Direito Ambiental e Mineração, para explicar com detalhes cada uma das ações e de que forma esse julgamento pode significar um marco histórico – positivo ou negativo para nós, brasileiros.
Lei.A: Como o “Pacote Verde”chegou ao STF?
Fernanda Mendes: O que é denominado “pacote verde” é um conjunto de ações que têm entre si uma singularidade temática, uma similaridade em termos de direitos requeridos nela por diferentes entidades, que buscam uma recomposição de direitos fundamentais pautados na Constituição Federal.

Todas estas ações têm como temática o meio ambiente e têm em vista as atuações do Poder Executivo, em especial, no que tange a gestão ambiental no país. Então o Supremo Tribunal Federal entendeu por bem juntar todas elas para discutir junto, já que em alguns casos, o assunto é o mesmo, predominando o assunto da Amazônia Legal, do desmatamento.

A ministra Cármen Lúcia, relatora de algumas das ações, explica bem no proferimento de seu voto referente a uma delas que o princípio do retrocesso é cabível não só na matéria ambiental, mas é o princípio da proibição do retrocesso em qualquer área dos preceitos constitucionais, inclusive na questão ambiental. Então, se já há determinado status de gestão e proteção do meio ambiente, não pode ser piorada a proteção, a boa gestão e a eficiência da gestão ambiental.

Lei.A: Você pode explicar o que é uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)?
Fernanda: Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma ação destinada a combater o desrespeito aos conteúdos mais importantes da Constituição Federal. Ela é uma ação residual, ou seja, usada quando não cabe às demais ações de controle concentrado de constitucionalidade. Ela vai ter os mesmos legitimados, ou seja, as mesmas pessoas competentes para ajuizar. Isso está definido no Artigo 103 da Constituição Federal. Pode ser o Presidente da República, a mesa do Senado Federal, a Câmara dos Deputados e a mesa da Câmara do Distrito Federal, Governador, Procurador Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), partidos políticos, congresso com representatividade e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito federal. A abertura dessa entidade de classe de âmbito federal atualmente teve uma evolução no STF porque na ADFPF 527, que trata sobre direito LGBT, foi admitida a Associação Brasileira de Gays Lesbicas e Transgêneros como entidade de classe de âmbito nacional. Isso significa que estamos vendo uma abertura de possibilidade, mas é muito importante que tenha esse âmbito nacional. É necessário que haja uma pertinência temática, não pode uma entidade de classe de trabalhadores propor uma ADPF que não tenha a ver com o tema que eles tratam.
Já a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) vai ser cabível quando, devido a falta de uma lei para fazer valer concretamente um preceito, uma ordem constitucional, há uma inércia do Poder Executivo e Legislativo para assegurar aquele direito constitucionalmente consagrado. Se, por exemplo, está na Constituição que cabe aos entes federativos a proteção da floresta, do meio ambiente e da biodiversidade e eles não envidam esforços para a devida fiscalização e contenção do desmatamento e tudo mais, caberia aí uma ADO por omissão. Isso vai fazer com que se tenha uma determinada atuação que pode ser legislativa como pode ser executiva, contra o Poder Executivo. A ação poderia, então, exigir fiscalização, exigir que se apresente algo de concreto para que o preceito do direito fundamental garantido na Constituição seja executado.

Já a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é usada quando se tem um ato normativo que está contrário à Constituição. Vale lembrar que esses mesmos legitimados do artigo 103 vão ser também os legitimados para propor a ADI, a ADO e a ADPF.
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Lei.A: Você poderia comentar, uma por uma, cada ação que será julgada pelo STF?
Fernanda Mendes: A ADPF 760, que cobra o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia (PPCDAm), foi proposta por vários partidos políticos (PSD e PC do B), tendo a União como ente solicitado. O objeto central é a ineficiência na execução do Plano, criado em 2004. Desde que ele foi criado, há uma progressiva diminuição no índice de desmatamento da Amazônia, porque há um planejamento de fiscalização para conter as ações ilegais. Com o atual governo, ele foi esvaziado. E aí a gente vê que essa ação tem uma ligação com a outra ação que fala da tomada pelos militares do Plano Brasil Verde 2, que confere a eles o poder da fiscalização, esvaziando o Ibama das suas devidas funções. O Ibama é um órgão federal. Ele vai ter as atribuições da competência que tange o Poder Executivo Federal de implementar aquelas políticas de meio ambiente e de garantir o seu cumprimento, de fiscalizar, autuar e embargar. E isso, no atual governo, foi esvaziado, em especial na Amazônia Legal, conferindo aos militares essa função de proteger a Amazônia.

O pedido, nesta ação, é que a União apresente um plano eficaz, porque, devido ao princípio da proibição do retrocesso, aquilo que já estava funcionando para proteger o meio ambiente não pode ser desmontado. Você pode melhorar, acrescentar, mas não piorar. Inclusive o voto da ministra Cármen Lúcia nesta ação, que aconteceu antes de ser pedido vista (pelo ministro André Mendonça), foi nesse sentido. Ela colocou um prazo de 90 dias com um plano eficaz de proteção com as devidas atividades para o Ibama, ICMBio (Instituto Chico Mendes) e a Funai (Fundação Nacional do Índio) porque a gente também tem visto um bombardeamento às terras indígenas, inclusive com um projeto de lei para permitir mineração sem a oitiva das comunidades.
A ADPF 735 tem foco no enfraquecimento do Ibama e questiona um decreto federal que retira a autonomia do órgão. Ela também tem a ministra Cármem Lúcia como relatora e ainda não foi votada. Foi proposta pelo Partido Verde (PV) em face do presidente da República e do ministro da Defesa. Trata-se de uma ação contra o decreto 10341, de 2020, da portaria do Ministério da Defesa, também de 2020, que teria retirado a autonomia do Ibama como agente de fiscalização ao atribuir a coordenação a operação Verde Brasil 2 do Ministério da Defesa. Nesse ponto eu queria alargar um pouco a crítica nessa questão de desvio das funções dos órgãos, que historicamente foram criados para determinados fins e que depois foram retirados nesse governo para outras funções, como por exemplo a Agência Nacional de Águas (ANA), que anteriormente era ligada ao Ministério do Meio Ambiente. A gestão da água está diretamente relacionada à gestão da qualidade ambiental da fauna, da flora, do solo, e ela simplesmente foi passada para o Ministério do Desenvolvimento Econômico. Ou seja, a água agora é um fator de desenvolvimento econômico, e não mais um fator ambiental. Essas desvirtuações levam à crise hídrica, levam à crise ambiental, levam à crise da perda de qualidade do ar, de aquecimento global. Então esse desvirtuamento das instituições é muito preocupante. Essa ADPF 760 tem vinculação direta com a ADPF 730, quando foi tirado do Ibama seu poder de fiscalização passando para o Ministério da Defesa algo que seria da alçada do Ministério do Meio Ambiente.
A ADPF 65, também é de autoria da ministra Cármem Lúcia, proposta pelo Partido Rede Sustentabilidade (Rede) em face da Presidência da República. Ela tem como núcleo de fundamentação o princípio de participação. Ela visa combater o decreto 10224, de 2020, que, ao regulamentar o Fundo Nacional de Meio Ambiente, instituído pela lei 7797, de 1989, exclui a participação da sociedade civil do Conselho Deliberativo previsto. Antes, essa lei era regulamentada inicialmente pelo decreto 3524, de 2000, e depois pelo decreto 6985, de 2009. Quando a gente analisa, a gente vê que cresceu a participação da sociedade civil de 2000 a 2009.

A Sociedade Brasileira de Defesa da Ciência (SBDC) era uma das integrantes do conselho deliberativo deste fundo e, com esse decreto (10224) se extinguiu a participação popular. A gente tem visto que essa questão, que não é só deste governo, tenta calar a voz da sociedade civil principalmente nos conselhos de meio ambiente já há muito tempo. O que eu temo é que forjam, inclusive, Organizações Não Governamentais (ONGs) como forma de substituir uma ONG verdadeira por uma ONG de papel, caso não se consiga retirar essa participação social da sua efetividade. Em Minas Gerais, a gente vê até mesmo o papel do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) diminuindo. Tem sido ceifada cada vez mais sua participação em questões estratégicas de licenciamento ambiental. Então, isso aí é uma questão que a sociedade brasileira tem que se atentar. Quem está por trás desses interesses, independente de quem está no poder público?
Já a ADI 6148, que também tem como relatora a Cármem Lúcia, o requerente foi o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e os réus são o presidente da República e o Congresso Nacional. Essa ADI visa declarar inconstitucional a medida provisória 1040, de 29 de março de 2021, que altera a lei 11598, de 2007, instituindo autolicenciamento para as empresas que são classificadas em risco médio de degradação ambiental, além de proibir os órgãos ambientais de requererem estudos adicionais no processo de licenciamento ambiental. Aqui em Minas Gerais, um exemplo de degradação ambiental considerada de risco médio são as barragens de rejeito. A de Brumadinho, por exemplo, que matou centenas de pessoas, era considerada com risco baixo de estrutura, ou seja, seria o caso de um autolicenciamento. Vale lembrar que, aqui em Minas, nessas de grau médio, já tinham tirado a participação da sociedade no processo de licenciamento, pois não era mais decidida pela Unidade Regional Colegiada, uma entidade com múltipla participação da sociedade civil que dava ou não essas licenças. Ficava a cargo dos superintendentes. Então já era uma decisão política. Agora com esse autolicenciamento, qualquer pessoa preenche na internet e já consegue uma licença.
A ADI 6148 questiona resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que estabelece padrões de qualidade do ar sem estipular prazos para a mudança. Então essa resolução trata sobre os parâmetros de qualidade do ar, que já estão em níveis críticos no mundo.

As pessoas não sabem o mal para saúde e a mortandade causada por doenças respiratórias provocadas pela má qualidade do ar. Isso tinha que ser mais divulgado e levado a sério pela sociedade civil e pelos nossos representantes.
A ADO 54, também de relatoria da Cármem Lúcia, tem como autora a Rede e como requeridos o presidente da República e o Ministro do Meio Ambiente. Ela tem como objeto a ineficiência da fiscalização na Amazônia Legal para combate do desmatamento, buscando fazer valer os artigos 23 e 225 da Constituição Federal. Por omissão de ato administrativo, o poder público executivo estava ineficiente em relação à fiscalização, tendo causado o aumento do desmatamento. Inclusive, a ministra, em seu voto, fala da ADO 54 e da ADPE 760 conjuntamente, justamente porque tem tudo a ver uma com a outra. Ela afirma que os requeridos não conseguiram comprovar que não diminuíram a fiscalização, sendo que existem evidências. Ela visa o implemento de atuação e fortalecimento por exemplo do Ibama e argumenta o fato de que teve um dado vindo das sustentações orais de que estava previsto um concurso para analista fiscal do Ibama comprovando assim que diminuiu em quase 50% o número de fiscais. É como se fosse um fiscal para cada Rio de Janeiro, em termos de tantos fiscais que tem no Ibama para fiscalizar o país inteiro. Então você retira verba daquele órgão, passa a atribuição para o Ministério da Defesa, sucateia o plano de prevenção e controle de desmatamento da Amazônia. O que mais falta entregar?
Por último, a ADO 59 é de relatoria da ministra Rosa Weber, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), além da Rede Sustentabilidade. Ela tem como objeto a paralisação do Fundo Amazônia.

Então, houve a extinção de dois órgãos desse Fundo que é o Comitê Técnico e o Comitê Orientador. O pedido da ação é para que seja reativado o Fundo com repasse da verba para projetos aprovados e análises das propostas da continuidade do funcionamento desse fundo num prazo de 90 dias.
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Lei.A: Você avalia que a sociedade civil tem se envolvido com o julgamento do “Pacote Verde”?
Fernanda Mendes: Não. A questão da consciência cidadã é algo que aquele que detém o poder econômico e político não quer. Quer que as pessoas assistam jornais com informações rasas, séries e novelas. Não quer gente que pense, se aprofunde em um tema, critique e cobre mudanças. Eu sou otimista e acho que Cármen Lúcia será seguida pela maioria dos ministros, porque é evidente o prejuízo e como a Constituição tem sido rasgada, desconsiderada, por todo esse pacote de ações do governo federal. Mas precisamos, sim, de que as pessoas se atentem para o perigo de cada um desses movimentos por parte do governo federal, e para a forma como esse julgamento pode representar um marco histórico para o Brasil.
