No mês que se celebra o Dia da Consciência Negra, nós, do Lei.A, trazemos um conteúdo especial sobre o histórico da maciça influência da cultura negra nos patrimônios brasileiros
Fechando esse mês de novembro, quando celebramos mais um importante Dia da Consciência Negra (20 de novembro), nós, do Lei.A, produzimos um conteúdo especial para você saber mais sobre como os Patrimônios Culturais Afro-brasileiros e os instrumentos para a proteção deles contribuem para o Direito à Memória da população afro-brasileira.
Em 2003 o governo federal instituiu o dia 20 de novembro como sendo o Dia Nacional da Consciência Negra. O objetivo era criar um marco social, temporal e – por que não – midiático como forma de potencializar as ações de combate ao esquecimento da luta da população negra contra a escravidão, o apagamento cultural, o racismo e genocídio negro ao longo da história do Brasil.
Antes de prosseguirmos, uma pausa para responder uma pergunta: mas por que o dia 20 de novembro?

Desde a institucionalização do Dia da Consciência Negra, vários atores sociais usam essa data para pautar a mídia, as escolas e a sociedade para uma reflexão sobre o racismo no Brasil. Afinal, entre os séculos 16 e meados de 18, mais de 3 milhões de pessoas sequestradas no continente africano chegaram ao Brasil, trazendo consigo culturas, saberes tradicionais, organizações políticas e familiares, religiões, histórias, valores e cosmovisão próprias. E aqui no Brasil, essa bagagem sociocultural foi utilizada como forma de resistência à opressão do racismo e se integraram à identidade brasileira.
Desumanizar, combater a resistência, excluir e inferiorizar: o ciclo do racismo no Brasil
Toda a resistência negra e sua contribuição para o que hoje entendemos como Brasil foram, durante séculos, negados até muito recentemente em nossa história. Isso porque o negro africano foi primeiro desumanizado para que fosse justificada a sua escravização, que foi da economia e política da colônia (e dos primeiros anos da independência). Depois, ao resistir, a negação foi uma forma de apagar as formas que esta população encontrava para se organizar e combater o modo de vida imposto. Já na época da abolição da escravização, esses grupos eram excluídos para manutenção da hierarquia social, em que se ecoavam pensamentos e atos racistas, e se negava a composição social brasileira, majoritariamente formada por negros e indígenas.
A partir da década de 1930, o imaginário nacional integrou a ideia do Brasil mestiço, a partir das relações raciais, mas a literatura, campo de constituição da identidade nacional, não foi capaz de equilibrar problemas na hierarquia social e cultural, em que certos grupos ainda eram colocados como submissos, menores, e muito estigmatizados.
De acordo com pesquisadora Lília Rolim Abadia, em sua dissertação defendida em 2010 na Universidade de Lisboa, na literatura do período, negros, indígenas e mestiços são “sub-representados ou ‘caricaturados’ em grande parte das obras canónicas.”
Nossa história e memória nacional ocultaram os bens culturais que eram produzidos pela e para a população descendente de africanos, bem como sua luta e resistência que estes patrimônios representavam. As edificações, sobrados, conjuntos urbanos, festividades, danças e culinárias foram invisibilizados na construção da nação, isto tudo, orquestrado pelo Estado.
A marginalização e exclusão dos negros no processo de construção do patrimônio cultural se revelou em muitas faces, e até hoje deixa resquícios e uma estrutura consolidada, racista e eurocêntrica. Nós, do Lei.A, conversamos com Marcelina Almeida, historiadora e estudiosa em patrimônio negro, para começar e entender a violência desta invisibilização.

Uma pausa na reflexão para exemplificarmos essa “invisibilização institucional”. Entre as 198 estátuas da cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, apenas 3 possuem ligação com o legado cultural negro: a Estátua de Yemanjá, na Pampulha; a estátua a Preto Velho, no bairro Silveira; e a escultura em homenagem a Zumbi dos Palmares, na Avenida Brasil.
Além dessa desigualdade das estátuas, outra “curiosidade”: diversos espaços públicos recebem a nomeação em homenagem às figuras históricas que foram responsáveis por alguma parte no extermínio de populações negras. Como por exemplo a Praça Duque de Caxias, a Avenida Cristóvão Colombo ou a Rodovia Fernão Dias.
Proteção do patrimônio (eurocêntrico)
No patrimônio também ficou manifesta a invisibilização da cultura negra. As primeiras noções de “patrimônio”, que acompanhavam o projeto de independência do Brasil, reconheciam como um bem cultural de valor para a nação apenas edificações de caráter monumental e ligadas ao passado europeu violento com populações de outras etnias. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e no Decreto-Lei nº 25, de 1937, institui que o único instrumento de preservação do patrimônio cultural nacional era o tombamento de bens materiais – móveis e imóveis, excepcionais.

Mas esse reconhecimento não nasce apenas da boa vontade ou da ação dos tomadores de decisão. Ele vem em resposta a uma ação contínua de resistência da própria população negra. A luta do movimento negro permitiu, a partir da nova Constituição Brasileira de 1988, um novo modelo, tanto no que seria patrimônio nacional, com a inserção de bens intangíveis, quanto para quem os bens podem ter referências, incluindo os diversos grupos formadores da sociedade brasileira. No artigo 215 da Constituição estão explicitados dois grupos, os indígenas e os afro-brasileiros: “[o] Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. (Constituição Brasileira de 1988, Art. 215 -§ 1º).
Acompanhando as mudanças da sociedade e na Constituição, o Governo Federal ainda instituiu o Decreto 3.551 de 2000, que legisla sobre a proteção do patrimônio imaterial para a preservação da diversidade étnica e cultural do Brasil. Mais tarde, outro passo importante foi o Decreto 4.887 de 2003, que estabeleceu como novo marco para o reconhecimento da população afro-brasileira o critério de autoatribuição enquanto grupo étnico.
A nossa entrevistada Marcelina também comentou brevemente sobre avanços que, atualmente, podemos observar no campo do patrimônio cultural, com o interesse e produções diversas desta temática, que de certa maneira, acompanha a ampliação conceitual do patrimônio no Brasil.

#conheça
Os patrimônios Afro-Brasileiros nacionais e mineiros
O princípio de auto-atribuição étnica, presente na letra constitucional por meio do artigo 4.887/2003, nos dá pistas sobre a dificuldade de conceituar o que é o patrimônio afro-brasileiro. Se formos considerar tudo aquilo que teve a contribuição dos povos africanos e seus descendentes, a extensão deste patrimônio não teria limites visíveis, uma vez que esta população esteve envolvida na produção material desde o Brasil Colônia.
Porém, podemos considerar as heranças culturais afro-descendentes como a expressão singular de um coletivo com identidade e história comuns e que interage e as partilha com os outros coletivos. Fazem parte destas heranças modos de saber-fazer, expressões, cantigas e danças, culinárias, modos de se vestir, sistemas construtivos, materiais e técnicas etc.
Conheça agora alguns personagens que vão nos contar um pouco sobre histórias, memórias, conceitos e investigações do Patrimônio Cultural Negro:



As instituições responsáveis pela política patrimonial brasileira vêm, há anos, tentando identificar e reconhecer a cultura dos grupos antes muito invisibilizados, com alinhamento a debates internacionais junto à Unesco, e agregando a própria população no processo de definição do que seria patrimônio cultural para eles, em um movimento participativo.

Nós, do Lei.A, buscamos mais a fundo alguns dos patrimônios afro-brasileiros reconhecidos e protegidos em Minas Gerais, com significativas representações aos mineiros e a sua história, com intuito de contar um pouco das memórias que giram em torno destes bens culturais
Os Quilombos
Para a população escravizada em terras brasileiras, a principal forma de resistência contra a opressão se deu na formação dos quilombos, que longe de ser o local isolado que abrigava “fugidos”, era o local de organização de outra cultura e outra estrutura política de quem lutava por liberdade e terra.
Apenas em 1986, passados 48 anos desde a criação da primeira instituição do Estado responsável pela proteção do patrimônio e identidade nacional, o Sphan, o primeiro quilombo é reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, ainda sob a perspectiva arqueológica dos quilombos como ruínas ou exclusivos do passado colonial.
O primeiro quilombo a ser reconhecido é também o quilombo mais emblemático e simbólico da resistência contra o sistema escravista. Trata-se do Quilombo dos Palmares (ou “República dos Palmares”), e sua longa existência, de cerca de 99 anos, dão testemunho da força de sua organização política e social.

Minas Gerais abriga o segundo quilombo a obter o reconhecimento de patrimônio cultural nacional, o Quilombo de Ambrósio, quatorze anos após Palmares, em 2000. Trata-se de um bem cultural de caráter arqueológico, com remanescentes do que foi um quilombo atacado e caído em 1759, na cidade de Ibiá.
Segundo a Fundação Palmares, Minas Gerais abriga 346 comunidades negras quilombolas reconhecidas, se consolidando como o 2º estado em número de comunidades (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – 2019).
A própria capital mineira, Belo Horizonte, possui cinco comunidades quilombolas reconhecidas em pleno centro urbano, sendo elas: Luízes, Mangueiras, Manzo Ngunzo Kaiango, Souza e Quilombo Os Carolinos. Algumas delas remontam a períodos anteriores à fundação da cidade, quando a região ainda era conhecida como Curral Del-Rei.
Além do reconhecimento pela Fundação Palmares, estas comunidades são registradas como patrimônio imaterial de Belo Horizonte, pelo Conselho Deliberativo de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, exceto Os Carolinos – ainda não registrado pelo Conselho.
Para o professor e curador do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, padre Mauro Luiz Silva, estes quilombo funcionam como um território de resistência negra em Belo Horizonte, até os dias de hoje. “É de fundamental importância a valorização dessa ancestralidade negra, da presença dessa ancestralidade nesses quilombos urbanos, e reforçar o papel dos espaços de memória em valorização dessas culturas africanas em diáspora”, completa.
A primeira comunidade tradicional a ser registrada na categoria de Lugares pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG), o que abriu as portas para o reconhecimento de outras comunidades, é dos Arturos, na cidade de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ela possui, além de sua organização social e espacial própria, diversas festividades e outros bens culturais, como a Festa de João Mato, Festa da Abolição, Folias de Reis, Congados, Guardas de Congo e de Moçambique, e a mais conhecida: a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Arturos. Sua culinária e conhecimento sobre plantas chamam atenção pela relação íntima com o território quilombola.


Os Terreiros e Casas de Matriz Africana
Outra forma do africano escravizado resistir no Brasil, ainda que permanecendo cativo, era na prática e transmissão da sua cultura religiosa nos terreiros, sejam eles de Candomblé, Umbanda ou Batuque. Os terreiros não existiam propriamente no continente africano, foram desenvolvidos aqui no Brasil, agrupando grupos diversos de jejes e nagôs, com lugar em edificações típicas da época, nas cercanias das vilas.
Em diversas vilas no Brasil Colônia, a expressão religiosa de matriz africana era proibida pela administração, e mesmo após a abolição permaneceram proibidas as práticas das religiões não católicas em lugares públicos, sendo as demais relegadas apenas à esfera doméstica (particular). Anos depois, esta proibição se moldou em forma de preconceito com tais religiões.
Reconhece-se os terreiros e casas de matriz africana atualmente, como patrimônios culturais, por guardarem consigo símbolos, tradições como danças, poesias, ritos, rituais, cantos e organizações espaciais diversas. O Iphan, a partir de alguns programas e projetos, como o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidade de Matriz Africana (2013-2015), buscou acompanhar os processos de proteção dos terreiros existentes no Brasil. Hoje, nacionalmente, nove espaços de devoção, na Bahia e Maranhão, são tombados.

Hoje o Iepha/MG, por meio do Programa de Proteção da Cultura Afro (Afromineiridades), realiza a identificação e cadastro de Terreiros e Casas de Matriz Afrorreligiosas do estado, como fomento para construção de políticas públicas que protegem tais lugares e reconhecem os espaços sagrados, território de axé e fé como patrimônio cultural.
Se você é integrante ou conhece alguma comunidade de terreiro de Minas Gerais participe e preencha o formulário clicando aqui.
Nós, do Lei.A fomos conversar com Belinha (Isabel Casimiro), liderança do espaço Reinado Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, fundado em 1933, para compreender um pouco melhor sobre os modos de vidas, práticas culturais e especificidades das Casas de Matriz Africana. Ela nos contou que o local abrange diversas atividades como benzeção, distribuição de itens, cursos e palestras, e manifestação do Tambor Crioula.
Há também diversas festividades como a festa de Nossa Senhora do Rosário do Treze de Maio – principal festividade no mês de maio, além da Festa de São João no mês de junho, Grupo de Folias que são recebidos em janeiro, Festa de Aniversário do Grupo de Capoeira em janeiro, Festa de Cosme e Damião em setembro, Festa de São Crispim Crispiniano em outubro. Há também toda a prática da devoção e fé.

Materialidades ligadas a Irmandades dos Homens Pretos
Minas Gerais, como palco da descoberta do ouro no Brasil, foi espaço do surgimento de vilas e cidades com a vinda de diferentes povos, das capitanias, incluindo os negros escravizados, vindo sob violência. Foram esses povos que deram origem às formações sociais e culturais, arquitetônicas e rituais religiosos. Foi nesse período do Ciclo do Ouro, em Minas Gerais, que surgiram as Irmandades dos Homens Pretos.
Elas eram uma das mais ativas e atuantes em Minas Gerais, isso devido a restrição imposta pelos brancos aos escravizados demonstrarem sua fé. Essas organizações protegiam seus membros e construíam espaços para suas devoções, fortalecendo suas tradições, cultura e fé. Essas irmandades nutriam grande devoção por Santa Efigênia, São Benedito e em especial, por Nossa Senhora do Rosário. A preferência dos escravos pela santa católica se deu devido ao seu rosário, semelhante ao “rosário de ifá”, usado pelos sacerdotes africanos.
A construção de igrejas pelas irmandades deixou legados até os dias de hoje. Não é incomum, em interiores mineiros, encontrar templos dedicados a estes santos, assim como as festividades e expressões culturais associados a estes templos. Além dos espaços religiosos, os adros, largos e praças e cemitérios compõem os espaços que foram ocupados e construídos pelos negros, com seus diversos modos de vidas.
No entanto, em outros casos, este importante legado ainda corre sérios riscos de desaparecer, como aprendemos com o caso do Largo do Rosário, em Belo Horizonte. Ele foi a área da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, inaugurada em 1819, e de seu cemitério com 60 sepulturas, em funcionamento desde 1811, no antigo arraial Curral del-Rei, construído pela Irmandade dos Homens Pretos.
A comissão construtora da nova capital de Minas Gerais optou pela destruição destas materialidades, assim como de suas histórias e memórias em 1987. Em outubro daquele ano, o Iphan decidiu pela paralisação das obras de um edifício nas ruas centrais de BH, considerando que entre a Rua da Bahia e a Rua Timbiras se insere o Largo do Rosário, herança da população negra.

Para se ter ideia deste extermínio, a capela dedicada à Nossa Senhora do Rosário é transferida, no âmbito da construção de Belo Horizonte, para um edifício que ainda hoje se encontra na Avenida Amazonas , entre as ruas São Paulo e Tamoios; a Irmandade, no entanto, é expulsa desta nova casa, e seu cemitério é para sempre perdido.
Em 2022, após movimentos sociais de resistência e reivindicações pela real história das cidades e dos povos que nelas viviam, o Largo do Rosário foi reconhecido como Patrimônio Imaterial de Belo Horizonte, afirmando uma referência identitária da população negra e uma nova relação entre memórias afro-brasileiras e seus espaços ocupados historicamente.

Outro fato relacionado às Irmandades dos Homens Pretos foi a organização de Reinados e Congados, que se consolidam como manifestação religiosa afrobrasileira, iniciada no século XVII, com origem nos ritos de coroação dos reis negros e africanos, e reesignifcados no Brasil.
A manifestação cultural está enraizada na cultura mineira, e desde sempre esteve vinculada a irmandades religiosas negras, como as de Nossa Senhora do Rosário. Existem atualmente, uma diversidade de matrizes, grupos, formas de expressão e ritos, sendo reconhecido como patrimônio cultural imaterial de Minas Gerais, pelo Iepha/MG.

Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte
A Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de Chapada Do Norte, município localizado no Médio Jequitinhonha, é uma celebração tradicional desde o século XVIII, e guarda consigo expressões da cultura afro-brasileira e uma história de resistência dos homens pretos de antigamente.
A origem da festividade é registrada no documento de 1822, em que a celebração se deve à devoção e homenagem prestada à Santa pelos irmãos do Rosário. Porém, há indícios que antes mesmo deste ano ela já ocorria pelas características arquitetônicas da Igreja do Rosário no século XVIII, que esteve desde sempre ligada ao festejo.
A celebração inicia-se com as novenas, que representam cada uma das nove noites de oração, e que se refere a preparação espiritual comum às festas religiosas. O festejo conta ainda com algumas atividades seculares no seu desenvolvimento como os leilões, lavagem da Igreja, Quintal do Angu, Buscada da Santa, Mastro a Cavalo, Reinado, Missa da Festa, Distribuição dos doces, Coroação, Feira dos Mascaste e outras.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário possui elementos e bens associados importantes para sua ocorrência e permanência, que se liga à identidade do povo, locais e práticas de socialização e comunhão: a Imagem de Nossa Senhora do Rosário Grande e Pequena, as alfaias e instrumentos musicais, as vestimentas dos irmãos e do grupo de Congado, e Capela e Largo do Rosário, além das áreas de procissões, celebrações e expressões culturais.
A festividade foi considerada patrimônio imaterial pelo Iepha/MG em 2013, representando mais de dois séculos de fé, devoção, culinária, cultura e raízes dos homens negros.
#monitore
As novas ameaças à cultura e aos territórios Afro-Brasileiros
Na história recente do Brasil, tendo como marco 1500, data da invasão portuguesa, por 353 anos houve escravização da população africana e de seus descendentes, e apenas 134 anos de trabalho liberto – e não menos violento com a existência e resistência negra. Vários foram os tipos de violência sofridos por essa população, desde agressões físicas até o sequestro de terras, pela Lei de Terras – que foi o primeiro gesto regularização fundiária no Brasil, mas que reforçou o poder dos latifundiários e, com isso, a desigualdade e os preconceitos.
Uma das causas para a violência sofrida pelos quilombolas é a disputa pelos territórios que ocupam e que são, por vários motivos, cobiçados por empresas ou latifundiários para expansão das atividades de agropecuária, mineração, especulação imobiliária ou empreendimentos de turismo.

Por estes motivos se diz que a questão da terra no Brasil seguiu um padrão racista e colonial, e porque a questão da titulação dos territórios de Quilombos e Terreiros é tão importante e é alvo frequente de violência.
Mesmo com o alargamento do conceito de patrimônio, de forma que contemple os bens tangíveis e intangíveis das populações “minoritárias”, e assim garanta o direito à memória e à preservação da cultura, há obstáculos e violências a se enfrentar. O reconhecimento e a aplicação de políticas públicas patrimoniais a tais bens culturais são importantes, pois gera visibilidade a este patrimônio – antes excluído, e possibilita um maior fomento e apoio para sua manutenção, assim como sua difusão.
#aja
Nos últimos anos, ganharam força iniciativas para o resgate e valorização da cultura, memória e importância dos grupos afro-brasileiros. São trabalhos de ONG’s, coletivos e associações, ou até mesmo políticas públicas, que visam fortalecer o quinhão da população negra na construção do Brasil por meio do seu protagonismo. Nós, do Lei.A, separamos algumas dessas ações para apresentar a você e lhe inspirar a fortalecer outras iniciativas como elas.
Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos

Em 2012, o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu) surge em Belo Horizonte como o terceiro museu do país a se dedicar à produção cultural das favelas. Trata-se de um museu social e comunitário que busca dar visibilidade à população negra, sobretudo dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia, por meio do protagonismo de sua memória coletiva em uma instituição que historicamente foi negado às “minorias”.
Mapa de Quilombos Urbanos
O mapeamento dos quilombos, para além de registrar esse patrimônio imaterial de luta, auxilia a acompanhar o processo de titulação das terras quilombolas, é central para a existência da comunidade. A Comissão Pro-Índio, ONG fundada em 1978, mantém o Observatório dos Quilombos, que mapeia os territórios quilombolas regularizados e em processo. Estas informações são reunidas e expostas desde 2004, portanto, um ano após o Decreto Federal 4887, marco que regula o processo de titulação dos Quilombos. As informações estão disponíveis em: https://cpisp.org.br/direitosquilombolas/observatorio-terras-quilombolas/
Rota dos Quilombos
A Rota dos Quilombos é um projeto de 12 comunidades quilombolas do Médio e do Alto Jequitinhonha para a implementação do Turismo de Base Comunitária. Seu surgimento se deu a partir do projeto de educação socioambiental e patrimonial que formou agentes quilombolas para o turismo, que como legado deu origem ao empreendimento social autogerido pelos próprios moradores, que oferecem roteiros pelas comunidades integrantes.
O Turismo de Base Comunitária, processo adotado pelo projeto propõe um turismo de imersão lenta na cultura quilombola, em que ocorre uma troca de experiência entre os turistas e comunidades, privilegiando aspectos das culturas afro-brasileiras e do seu cotidiano e saberes-fazeres.
Dois quadrinhos brasileiros: os livros Cumbe e Angola Janga
Os livros Cumbe e Angola Janga são romances gráficos brasileiros, traduzidos em vários idiomas, que retratam com realismo a vida e luta dos negros escravizados no Brasil Colônia. O primeiro conta histórias protagonizadas por negros e constrói uma narrativa sobre a senzala e o quilombo, uma alternativa àquela versão “oficial” do colonizador. A segunda obra retrata o importante Quilombo dos Palmares.
Os dois trabalhos são fruto de mais de 10 anos de pesquisa de seu autor, o ilustrador e professor Marcelo D´Salete. Segundo ele, o objetivo foi explorar algo abordado nas narrativas históricas dos grupos negros banto, do Congo e Angola. “Comecei a estudar os grupos bantos e ver o que poderia ser utilizado para dar força para os personagens e para a história. Criar um contorno sobre o que é cultura banto no Brasil talvez seja difícil, mas isso aparece de maneira muito forte e rica no nosso português, na música, nas celebrações etc”, afirma.

Para produzir esse conteúdo, nós, do Lei.A, tivemos acesso às seguintes fontes bibliográficas:
RISÉRIO, Antônio. Cidades no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2013
GODEIRO, Nazareno (org.) Revoluções e revoltas do povo brasileiro. São Paulo: Sundermann, 2020
GURAN, Milton. Sobre o longo percurso da matriz africana pelo seu reconhecimento patrimonial como uma condição para a plena cidadania. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. nº 35, 2017
CEDEFES. Rota dos Quilombos: Catálogo Turístico. Disponível em: <https://www.cedefes.org.br/wp-content/uploads/2021/05/rota-dos-quilombos_catalogo-turistico.pdf>
SILVA, Ludmila M. R. A “Chancela de Paisagem Cultural Brasileira” e sua contextualização no Vale do Jequitinhonha: a constituição identitário-regional da emergência quilombola e o patrimônio vivido do sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois. Tese (doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019.
ABADIA, Lilia. A identidade e o património negro no Brasil. Universidade de Lisboa, 2010.
BRASIL. Constituição Brasileira de 1988, Art. 215 -§ 1º.
IEPHA/MG. Programa de Proteção da Cultura Afro em Minas Gerais – Afromineiridades.
IEPHA/MG. Inventário da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. 2018.
IPHAN. Revista do Patrimônio, nº 35. 2017.
CHEIBUB, Michelle. Patrimônio Cultural e Comunidades Remanescentes de Quilombos: direitos culturais e instrumentos de proteção do IPHAN. IPHAN, 2015.
Racismo e violência contra quilombos no Brasil / Terra de Direitos, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas — Curitiba: Terra de Direitos, 2018.