Mês do Patrimônio | Os tesouros culturais do Vale do Piranga

Zona rural da região guarda preciosidades arquitetônicas, artísticas e culturais que contam a história de uma das áreas de colonização mais antiga de MG

Conheça mestre Piranga, escultor e santeiro que deixou várias obras no Vale, cuja história os estudiosos apenas começam a desvendar


O Vale do Piranga é tão vasto quanto impreciso. Ele é uma microrregião informal, cujos limites se estendem desde a cidade de Mariana, na região central de Minas, até aproximadamente o município de Viçosa, na Zona da Mata Mineira. 

O rio Piranga (vermelho, em tupi) nasce na serra da Mantiqueira, divisa dos estados de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, atravessa a zona urbana dos municípios de Piranga, Presidente Bernardes, Porto Firme, Guaraciaba e Ponte Nova – e dali em diante, ao receber as águas do rio do Carmo, passa a se chamar Rio Doce. 

É uma das regiões de colonização mais antiga de Minas Gerais, tanto urbana como rural, dos conhecidos casarões coloniais dos centros de poder às grandes fazendas, que atravessaram os ciclos do ouro, do café e do gado, além da cultura constante da cana de açúcar.  

Mas costuma-se chamar de Vale do Piranga não apenas as cidades banhadas pelo curso do rio, mas àquelas sob sua zona de influência direta, em todas as direções – de Itabirito a Ouro Preto, de Araponga a Carangola, de Conselheiro Lafaiete a Itaverava, de Rio Doce a Viçosa.

Para se ter uma ideia do território, o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Piranga (CBH Piranga) inclui também os rios do Carmo, Casca, Matipó e Xopotó, cobrindo 63 municípios e 17,5 mil quilômetros quadrados de área, onde vivem 711 mil pessoas.

Nesse Mês do Patrimônio Cultural, nós, do Lei.A Observatório, saímos em busca desses tesouros culturais muitas vezes guardados no campo, longe dos olhos do público, e que revelam as práticas e as paisagens culturais oriundas do processo histórico de formação do estado e do povo de Minas Gerais.  

Como a arquitetura rural ajuda a explicar os ciclos econômicos? Um encontro inesperado com uma maravilha da arte religiosa mineira e os caminhos da pesquisa  histórica sobre o mestre Piranga, escultor sacro ainda envolto em mistério, são os temas da nossa reportagem. #Conheça #Monitore #Aja 

#Conheça

Foto: Lei.A

A arquitetura rural do Vale do Piranga

A colonização do Vale Piranga seguiu o mesmo impulso originário do ciclo do ouro e da expansão urbana na região central do estado. A penetração territorial das fazendas se dava para abastecer os núcleos da administração colonial, como Ouro Preto. São, portanto, áreas rurais de colonização antiga, muitas vezes pioneira, cujas marcas do passado ainda estão visíveis na paisagem.  

Por estradas de terra próximas ao rio Xopotó, que vai desaguar no rio Piranga, já muitos quilômetros depois de Conselheiro Lafaiete, as propriedades rurais conservam entre si uma curiosa homogeneidade. Um “estilo” próprio, de reconhecimento imediato, embora diferente o bastante para causar um estranhamento.  

Segundo o arquiteto Cícero Ferraz Cruz, a arquitetura rural mineira, bem menos conhecida do que a dos conjuntos urbanos, é composta tipicamente pelo chamado clássico “plain”, ou “chão”, como é conhecido em Portugal – econômico, austero, apurado e simples, sem ornamentos, barato e feito com poucos materiais. 

O arquiteto lançou, em 2010, o livro “Fazendas do Sul de Minas Gerais – Arquitetura rural nos séculos XVIII e XIX”, um extenso e detalhado inventário sobre arquitetura rural na região. Segundo ele, do ponto de vista construtivo, as técnicas não se diferenciam tanto das urbanas do mesmo período. As mudanças estruturais se dão mais pela época de ocupação do território e pela finalidade da construção.

Isso explicaria, segundo ele, a uniformidade notada nas propriedades do Vale do Piranga, por exemplo. “A uniformidade se dá pela característica do ciclo econômico que houve ali, com métodos construtivos e estilos da época. Uma coisa de expansão territorial, avançando sobre as terras. E as fazendas se multiplicavam de um mesmo jeito”, conta o arquiteto.

Como característica construtiva, a arquitetura rural observada no Vale do Piranga usa a gaiola de madeira portuguesa, dos tempos pombalinos (século 18). Pouco depois, segundo Cícero Ferraz Cruz, a técnica construtiva começou a substituir a anterior então em voga no Brasil, de adobe. “Ela vem justamente através da região central de Minas, e continua se desenvolvendo rumo ao sul, com o afluxo constante de novos mestres portugueses trazendo essas técnicas”, diz.

Em seu estudo Cícero anotou que, via de regra, as fazendas que ainda mantinham atividade agrícola, ou seja, onde aquela arquitetura ainda servia à destinação originária, tinham melhor estado de conservação. Noutras palavras, sobreviveram ao tempo aqueles imóveis que continuaram sendo usados e passando por manutenções.

“Eu fiz uma estimativa, pelos documentos, que talvez 10% dessas fazendas do sul de Minas sobreviveram até o tempo que eu fiz o levantamento. É muito, se você pensar que nas cidades sobrou menos do que 10%. Eu creio que o que fez isso se manter de pé foi a continuidade do uso”, conta. Lei.A não encontrou levantamentos similares sobre o Vale do Piranga.

Projetos de restauração rural, ainda de acordo com o arquiteto, são raros, pois os proprietários tendem a abandonar a construção quando a manutenção torna-se dispendiosa. “Eles acabam construindo uma outra casa do lado, deixando a velha abandonada, caindo. É comum acontecer. É difícil que alguém consiga conhecimento técnico e recurso financeiro para fazer um bom restauro numa condição dessa”.

Foto: Lei.A

Vestígios materiais de antigas histórias

Célio Rodrigues, de 85 anos, é advogado e produtor rural, nascido e criado em Senhora de Oliveira. A terra onde vive atualmente era de seu pai, mas a fazenda original, de seu bisavô, um dos pioneiros da colonização da região, era bem maior, tendo sido repartida e vendida em porções menores por muitos anos. 

“Meu bisavô tinha uma fazenda muito grande, aliás, três grandes fazendas aqui. Tinha café aqui, tinha muito café, que hoje nem parece mais que teve, né? Tinha até cemitério só para os escravos. Dele, sobrou só um cadeado, desse tamanhão, que um compadre meu guardou”, conta Célio. 

A casa original da fazenda, em cujo porão criavam-se porcos, era do século 19 e ruiu de velha. A nova foi erguida já no início do século 20, um pouco mais acima no terreno, para escapar às cheias do córrego que passa atrás, mas o desenho da casa e o método construtivo foram copiados da original. “Construíram aquela casa com a madeira da casa antiga. As aroeiras das vigas são as mesmas”, diz.

Perguntamos a Célio sobre as capelas das fazendas, famosas pelos relatos históricos e de viajantes. Segundo ele, elas eram comuns na região, guardavam inclusive indumentária e apetrechos de missa próprios, pois os padres viajavam entre as propriedades para dar a comunhão aos senhores e aos escravizados.   

“A fazenda estava toda funcionando, tinha a hora da missa, o pessoal ia forte. O capelão já vestia a roupa, essas coisas. Chegava lá, era tirar o missal da gaveta só rezar. Mas não tem mais nenhuma. Acabou tudo, se perdeu. Porque estragou, porque vendeu, qualquer coisinha o pessoal vendia para fazer dinheiro. Acabou”, conta. 

Muitos quilômetros adiante, já margeando o rio Piranga, paramos para fotografar outra daquelas propriedades rurais tão peculiares da região. Convidados a conhecer a construção, nos perguntaram se queríamos ver a ermida. Além da chave enorme, do tamanho de uma mão, o caseiro trouxe junto uma vara para destravar as tramelas do portal. 

Demos de cara com um retábulo de Francisco Vieira Servas, mestre português estabelecido em Catas Altas do Mato Dentro a partir de 1752, conhecido pelos refinados e inconfundíveis retábulos espalhados por Outro Preto, Mariana, Congonhas e Sabará. Ele morreu em 1811, em São Domingos da Prata.

Fotos: Lei.A

#Monitore

Foto: Adriano Ramos

Por muito tempo acreditou-se que o retábulo citado fosse uma obra do artífice conhecido como mestre Piranga. Nele, aliás, não há imagens, pois as obras sacras da região, em geral atribuídas ao “artífice”, passaram a ter grande valor comercial na segunda metade do século 20 – e por isso foram guardadas em lugar seguro. Mas quem foi, afinal, mestre Piranga?

Ao contrário de Aleijadinho, que morou em Ouro Preto e tem trabalhos espalhados por vários pontos do estado, outros artistas, por falta de pesquisas, seguem praticamente anônimos. Ainda hoje restam obras e ateliês que mereciam ser melhor identificados. 

Nós, do Lei.A, procuramos o restaurador Adriano Ramos, cuja pesquisa recente sobre as identidades de mestre Piranga, em parceria com a pesquisadora Ângela Gutierrez, será publicada em breve, junto com um documentário. 

“Na verdade, Mestre Piranga foi uma designação dada por especialistas em arte barroca à oficina de escultura sacra que se instalou na Zona da Mata Mineira entre a segunda metade do século XVIII e meados do século XIX”, explica Adriano Ramos. 

“Ao analisarmos mais detalhadamente o repertório de obras atribuído ao mestre Piranga, é fácil perceber a presença de mais de uma individualidade em sua confecção. Seria como uma oficina que, à maneira das corporações de ofício, produziu largamente para atender a demanda procedente da constelação urbana do ciclo do ouro”, diz.

“É praxe quando os estudiosos não conseguem obter documentos que comprovem, ou mesmo que sugiram a autoria de obras de arte de determinada região, utilizar-se da mesma como referência. Daí a denominação ‘mestre de Piranga’, que de tão conhecida acabou por transformar-se em Mestre Piranga”.

O estilo inconfundível

Segundo Adriano Ramos, as esculturas produzidas por esta oficina são muito peculiares, com características inconfundíveis, “distintas de tudo do que até então havia sido produzido na Capitania das Minas do Ouro no decorrer do século XVIII”.

Segundo Adriano, o grupo escultórico é fruto do envolvimento de vários artífices que, sob a coordenação de um ou mais mestres do ofício, se alinharam esteticamente a um mesmo padrão de criação. “Apesar das diferenças pontuais entre si, mantêm a mesma concepção artística em suas composições”, diz.

A partir de algumas informações sobre artistas que atuaram no Vale do Piranga, de acordo com o pesquisador, “ora na confecção de retábulos, ora com a descoberta de licenças expedidas pela Câmara do Senado de Mariana para o exercício da profissão de entalhador na região”, deu-se início às pesquisas sobre os protagonistas desta oficina.

As pesquisas permitiram saber que dois artistas importantes, que atuaram na Igreja de São Francisco de Assis, em Mariana, anos antes, estavam na região do Vale do Piranga na década de 1780. Segundo Adriano, ambos deixaram, seja em Mariana, seja no Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, em Bacalhau, marcas e traços muito utilizados nas obras da escola de Piranga. 

“Trata-se do artista Luiz Pinheiro, que no censo de 1782 encontrava-se na região exercendo o ofício de entalhador, e havia sido o responsável pela execução do retábulo de São Francisco, em Mariana, cujo Cristo crucificado, em tamanho natural, apresenta significativas similaridades com os Cristos produzidos pela oficina de Piranga”, conta. 

“E também do português José de Meireles Pinto, autor, em 1781, do retábulo de Bacalhau, cujo coroamento comporta dois anjos com todas as características das obras da oficina de Piranga”. Adriano Ramos conta que foi descoberto também Antônio de Meireles Pinto, filho do José de Meireles, que atuava profissionalmente em Mercês, cidade da região. 

“A padroeira do alto do altar da Igreja de Nossa Senhora das Mercês tem todas as características de Mestre Piranga, ou seja, estrabismo, panejamento acentuado na altura dos ombros, cabelos em formato zigue-zague e querubins com as mesmas particularidades de outros atribuídos ao referido mestre. Até então, nenhum especialista havia relacionado essa imagem à oficina do Mestre Piranga”, conta.

A pesquisa completa, ainda inédita, será lançada em breve, junto com um documentário de Alexandre Máximo, com roteiro de Sávio Grossi, já em fase de produção, com o apoio da Rede Minas.

#AJA

E ainda tem a cachaça

O modo tradicional da produção de cachaça dos mestres alambiqueiros do Vale do Piranga está prestes a se tornar Patrimônio Imaterial da Cultura Mineira. Um projeto de lei que trata do tema, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (clique aqui e conheça), já foi aprovado em 1º turno no Plenário. 

O instrumento protetivo permite que os modos de fazer da cultura sejam preservados, além de gerar valor às comunidades pelo reconhecimento de origem dos produtos e das marcas. Segundo o Ministério da Agricultura, a região é a 2a maior do país em marcas de cachaça de alambique registradas, mais de 300, ficando atrás apenas da região de Salinas, no norte de Minas Gerais. 

A cachaça do Vale do Piranga é conhecida pela suavidade e pela textura pouco encorpada – aquela que desce fina, sem arranhar nem queimar a garganta. O aroma é doce, algo como baunilha, o gosto é amadeirado, típico dos tonéis onde ela é tradicionalmente envelhecida, como a amburana e o jequitibá. 

Agora você conta pra gente: o que é patrimônio pra você?

Quer saber onde estão os patrimônios culturais do Vale do Piranga, ou da sua cidade? Clique aqui e veja na Plataforma Lei.A onde ficam os bens culturais protegidos em todos os 853 municípios de Minas Gerais. 

#Conheça #Monitore #Aja

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