Marco Temporal: os museus como espaços de formação da memória indígena

No quarto episódio da série do Lei.A sobre o Marco Temporal, resgatamos a presença dos espaços museológicos como ferramenta de formação da consciência cidadã 

O maior acervo de peças ligadas à cultura e outras atividades dos povos indígenas do território brasileiro desapareceu há quase quatro anos. Virou pó quando o fogo tomou conta das instalações da mais antiga instituição científica do Brasil, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, no dia 2 de setembro de 2018. O espaço, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também guardava cerca de 20 milhões de itens, entre os quais estavam peças como o fóssil humano mais antigo já encontrado no país, uma coleção egípcia que começou a ser montada por Dom Pedro I e o fóssil de um dinossauro de origem mineira. 

Foto: Reprodução TV Globo

O acervo  também contava com objetos do folclore brasileiro, afro-brasileiros e africanos e de culturas e povos já extintos, mas que tiveram inquestionável relevância na constituição do Brasil como ele é, desde o período anterior à colonização até os dias atuais. Em uma única noite, cerca de 90% do acervo do Museu Nacional foi perdido para sempre. 

A tragédia simbolizou um apagamento irreversível da memória brasileira para historiadores, cientistas, arqueólogos, professores e pesquisadores. Escancarou a importância desses lugares – museus e instituições ligadas à preservação da memória – para o povo brasileiro, não só como espaços culturais, mas também como territórios de pesquisas fundamentais para o entendimento da humanidade.

Partindo deste triste episódio da história brasileira, nós, do Observatório Lei.A, chegamos ao quarto e último conteúdo da nossa série especial sobre a teoria jurídica do Marco Temporal.

Confira aqui os três outros conteúdos da série especial do “Marco Temporal”:
Marco Temporal: mais um desmonte da Constituição?
Marco Temporal | O apagamento da cultura indígena
Marco Temporal: como furar a bolha quanto ao interesse por pautas indígenas


Agora o nosso convite é para uma nova reflexão: quais são as políticas que apagam ou protegem a memória do Brasil? Qual a função dos museus na preservação da história passada, para que seja possível entender o momento presente? 


#conheça 

O  Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)  é um órgão federal vinculado ao Ministério do Turismo, que se encarrega – desde 2009 – dos direitos, deveres e obrigações relacionados aos museus federais no país, gerenciando 30 destes e também desenvolvendo ações para os outros institutos. De acordo com o Ibram, ao todo, o Brasil possui mais de 3.700 museus, sendo 65% deles públicos, entre os quais 456 federais. 


O historiador, pesquisador e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Yussef Campos, analisa os museus como importantes espaços de formação e instrumentos de preservação da memória cultural de um povo. “Eles são  guardiões do patrimônio material ou imaterial de um lugar. É lá que passado, presente e futuro se encontram na construção de espaços de reflexão para servir à sociedade e ao seu desenvolvimento”. 

Mas, mesmo com uma possibilidade extensa de acervo e da alta quantidade de instituições museais no Brasil, ainda existe desigualdade no acesso a esses espaços. Um levantamento realizado em 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica que apenas 30% da população brasileira já frequentou algum museu no país, dificultando a popularização da cultura e a democratização da quantidade de informações históricas, artísticas e científicas relevantes expostas ao público, no Brasil. Os dados oferecidos pelo Instituto também mostram que a distribuição dessas instituições pelo país não é homogênea, já que as regiões Sul e Sudeste concentram cerca de 67% dos museus de todo o país. 

Para além da ausência de políticas públicas que garantam e fomentem o acesso da população a esses espaços, o país também passa há alguns anos por um período crítico no que diz respeito aos recursos destinados à cultura. O incêndio no Museu Nacional é um dos retratos da falta de investimento e manutenção destinados a instituições culturais no Brasil. Na época do ocorrido, a  instituição deveria receber um repasse anual de R$ 550 mil da UFRJ, que desde então passava por uma crise financeira. Mas nos três anos anteriores ao incêndio, o museu só tinha recebido 60% deste valor. Por isso,  não havia recurso para pesquisa e manutenção dos espaços. 

Nesse contexto, o atual presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), extinguiu em 2019  o Ministério da Cultura (MinC) por meio de uma medida provisória. O conjunto de competências e órgãos articulados e dinamizados pelo MinC, em parte, foi distribuído para outros ministérios, e outra parte acabou extinta. Além disso, o orçamento federal disponível para políticas culturais recuou 46,8% entre 2011 e 2021. 


#monitore 

Memória: Brasil, um hiato latino-americano 

Para o historiador Yousef, o Brasil é o país da América Latina onde mais há  desvalorização das políticas de memória. Ele usa os períodos das ditaduras militares nos países latinos como exemplo. “Aqui a gente teve a Lei da Anistia 1979, que explica muito do Brasil de hoje. Em nenhum outro lugar da América Latina existe esse apagamento de um momento histórico tão determinante para a população como foi a ditadura. Na Argentina, por exemplo, não há dúvida sobre a ditadura ou sobre os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, porque as pessoas estão sendo julgadas e presas. Os museus do país escancaram esse momento da história para quem quiser ver. No Brasil, essa fase da história foi apagada, perdoada, e isso influencia em tudo, inclusive na presença desse tema nos espaços culturais. Isso é muito grave, pois faz com que o brasileiro não tenha contato com sua própria história”, analisa. 


Para não dizer que o tema é absolutamente ignorado no Brasil, vale ressaltar a existência do  Memorial da Resistência de São Paulo, museu gratuito que é o único do país a preservar as memórias da resistência e da repressão política durante a ditadura militar brasileira. O local existe há mais de 12 anos, mas ainda é pouco conhecido da maioria dos brasileiros.



O museu como espaço político

Voltando à temática de nossa série especial, lembramos que o julgamento da tese jurídica do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem ligação direta com a questão da memória e do apagamento. Tendo em vista que ao se delimitar uma data para um território ser considerado “indígena ou não”, automaticamente, se apaga, se desconsidera, se ignora – ao menos juridicamente – um período histórico e consequentemente, todas as memórias que ele poderia construir. 

E quando se pensa nos museus – ou nas suas faltas -, eles poderia cobrir parte dessa lacuna “Como espaços de formação, os museus nos dão essa oportunidade de conhecer um tempo que não vivemos, mas que nos atravessa até hoje”, explica Yousef. 

Museus também como espaços de afirmação de existência

Do Museu Nacional, restou uma única coleção do acervo antropológico relacionado aos povos indígenas no Brasil, que sobreviveu por estar exposto em espaço não atingido pelo incêndio. O conjunto de artefatos indígenas que virou cinzas incluía 40 mil itens pertencentes a mais de cem grupos étnicos, entre eles peças recolhidas durante expedições a áreas amazônicas remotas nos séculos 19 e 20. 

Máscara da etnia ticuna, povo indígena da Amazônia, que se perdeu no incêndio de 2 de setembro de 2018. Foto: Museu Nacional

Mas, para a museóloga Viviane Wermelinger, responsável pelas exposições do Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), ainda há história preservada a ser contada sobre o Brasil. “O museu é um espaço político para todos nós, para toda a sociedade, porque são objetos da história selecionados. E os indígenas já perceberam isso há um tempo. Tanto que nós temos muitos museus indígenas, que são feitos pelos indígenas, no Brasil”, ressalta.

Segundo ela, o maior número de museus indígenas está na região Nordeste, palco histórico de violência, expulsão e apagamento cultural. Os museus etnográficos, principalmente os dos grandes centros urbanos, diz Viviane, devem estabelecer práticas colaborativas com os povos indígenas, incluindo exposições autonarrativas e requalificação dos acervos existentes.

Exposição Resistência já! Fortalecimento e união das culturas indígenas Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena, aberta ao público no MAE/USP. https://mae.usp.br/exposicao-resistencia-ja/ Foto: MAE/USP.

Viviane reforça que a política de memória é muito importante para o reconhecimento e fortalecimento dos grupos indígenas, não apenas como registro de uma história passada. “Mostra também a presença deles na contemporaneidade, que eles existem hoje, que eles estão aqui”, diz.

“Parece que eles só eram indígenas naquela época. Não. Eles continuam sendo indígenas. Eles continuam sabendo fazer [os artefatos]. Tendo a matéria-prima, o saber-fazer deles, eles têm essa relação.” VIVIANE WERMELINGER | Museóloga

No processo de construção conjunta da exposição chamada “Resistência já! Fortalecimento e união das culturas indígenas Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena”, aberta atualmente no Museu Etnográfico e Arqueológico da USP, Viviane conta como se deu a construção em conjunto com indígenas Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena, povos que vivem no centro-oeste do estado de São Paulo. 

Um dos artefatos que fazem parte da exposição, uma vestimenta em plumagem de ema, estava guardada na reserva técnica do MAE de tal forma que parecia ser uma única peça. No entanto, a partir da requalificação do acervo, com os povos indígenas, se descobriu uma vestimenta completa, com saia, cocar, par de braçadeiras e par de tornozeleiras. 

Vestimenta de dança em plumagem de ema, parte da exposição do Museu de Arqueologia e Etnografia – MAE/USP.

Questionada sobre o Marco Temporal, Viviane é enfática: “Primeiro, a gente sabe por que querem tirar as terras dos indígenas. É por conta do agronegócio. A gente sabe que o lucro vai para a mão de poucos e que a população, mesmo, não ganha nada com isso. Só ganha desmatamento, poluição, falta de água e comida cara”. 

“Segundo, dizer que os indígenas só têm direito à terra se eles estavam lá até 1988 é um absurdo. Porque todas essas terras eram deles. Eles foram sendo dizimados, afastados de suas terras e foram sendo levados, excluídos e marginalizados”, complementa. E essa história é contada nos museus onde a memória indígena é preservada, mostrando onde e como esses povos viviam. 

A demarcação das terras indígenas, diz a museóloga, é o que vai garantir a preservação dos modos de vida dos povos indígenas. “Originalmente viviam da agricultura, da caça, da pesca. Para isso você precisa de espaço. Ninguém caça e pesca num lugar que não tem terra fértil, que não tem água.”

“Não existe muita terra para pouco índio. Pelo contrário, a população está cada vez mais empobrecida. E o que estão fazendo com os indígenas é isso, empobrecê-los. Empobrecer em todos os sentidos, na alimentação, na cultura”.

Confira o depoimento da museóloga Viviane Wermelinger.

#aja

Visite e apoie museus com a temática indígena

Um modo de cuidar da nossa memória coletiva é apoiar museus e centros culturais. Sendo assim, nós, do Lei.A, separamos algumas dicas de museus brasileiros dedicados à temática indígena.

Museu do Índio (Rio de Janeiro/RJ) | Pertence à Fundação Nacional do Índio (Funai) e estimula a preservação do patrimônio cultural indígena, conserva, pesquisa e documenta as informações do material etnográfico dos povos originários.

Centro Cultural dos Povos da Amazônia (Manaus/AM) | Entre outras atividades, o espaço conta com exposições temporárias e permanentes sobre os povos amazônicos. Possui rico acervo cedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). 

Foto: Michael Dantas 


Memorial dos Povos Indígenas (Brasília/DF) | O prédio foi projetado por Oscar Niemeyer e tem como inspiração as aldeias dos índios Yanomami. Seu rico acervo é composto por diversas doações de antropólogos, como Darcy Ribeiro.

Fonte: MuseuBrasil.com.br

Museu de Arte Indígena (Curitiba/PR) | É uma instituição privada e se dedica a acervos de obras de arte produzidas por povos indígenas.

Memorial Museu Indígena Kanindé (Aratuba/CE) | Seu acervo é dedicado a obras de indígenas da Comunidade Kanidé, espalhada pelos municípios de Canindé e Aratuba, no Ceará.

Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre (Tupã/SP) | Fundado em 1966, ele tem como objetivo levar o visitante a entender como as culturas do Brasil estão interligadas e assim, reforçar como a cultura indígena é parte indissociável de nossa contemporaniedade.

Foto: Alisson de Oliveira 


Museu do Índio (Uberlândia/MG) |Tem como missão colecionar, proteger, interpretar e difundir bens culturais indígenas, buscando o diálogo com a comunidade. Foi criado em 1987 e está vinculado à Pró-Reitoria de Graduação (Prograd). O acervo é composto por cerca de 2.500 objetos das categorias cerâmica, plumária, trançados, armas, indumentária, e artefatos mágicos e lúdicos. 

Museu Kuahi (Oiapoke/AP)| A iniciativa de criar o museu partiu de quatro etnias que habitam o extremo norte do Brasil, na fronteira com a Guiana Francesa: palikur, galibi kali’na, karipuna e galibi marworno. Gestado desde o final da década de 1990, o espaço nasceu em 2007 com o objetivo de dar visibilidade à cultura indígena e funcionar como um centro de referência, memória, documentação e pesquisa para os indígenas da região. 

Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (Salvador/BA) | O museu guarda valioso patrimônio em busca de preservar e reconstituir a memória e identidade do povo brasileiro através de suas exposições de acervos arqueológicos e etnográficos representativos do passado pré-colonial, colonial e contemporaneidade de povos indígenas que contribuíram para a formação da diversidade de povos e identidades brasileiras.

América do Sul e outras temáticas

Também trouxemos dicas de museus da América do Sul dedicados a preservar a história da luta pelos direitos humanos e da resistência.

Memorial da Resistência (São Paulo, Brasil) | Preserva a memória da resistência e da repressão no Brasil republicano, especialmente durante a ditadura civil-militar.

Museu da Memória e Direitos Humanos (Santiago, Chile) |  Dedica-se a homenagear as vítimas de violações dos direitos humanos durante a ditadura chilena de Augusto Pinochet,  estimular a reflexão e o debate sobre respeito e tolerância.

Espaço Memória e Direitos Humanos (Buenos Aires, Argentina) | Antigo centro de detenção, tortura e extermínio, hoje é um local que busca preservar a memória e defender os direitos humanos, trazendo a compreensão de como fucionou a ditadura argentina entre 1976 e 1983.

Lugar da Memória, Tolerância e Inclusão Social  (Lima, Peru) | Promove uma reflexão crítica sobre os discursos de ódio, acolhe diferentes vozes que viveram a violência do período entre 1980 e 2000 e busca estabelecer o diálogo como forma de conviver com as diferenças.

Centro Cultural Museu da Memória (Montevidéu, Uruguai) | Busca construir a memória sobre a violência do Estado e a luta do povo uruguaio contra a ditadura.

Centro de Memória, Paz e Reconciliação (Bogotá, Colômbia) | Tem o objetivo de promover a cultura de paz e respeito pelos direitos humanos, a partir da memória e da história em direção ao aprofundamento da democracia, com foco na participação popular e plural.

Museu Afro Brasil (São Paulo, Brasil) | Abriga elementos da cultura e história africana e afro-brasileira, como religião, trabalho, arte e escravidão, além de trazer as influências africanas na construção da sociedade brasileira.

Museu da Diversidade Sexual (São Paulo, Brasil) | Dedica-se à memória, arte, cultura e acolhimento da comunidade LGBTQIA+ com a finalidade de promover o diálogo, a luta pela dignidade humana e direitos relacionados à diversidade sexual.

Museu da Maré (Rio de Janeiro, Brasil) | Criado por jovens moradores do Centro de Ações Solidárias da Maré, é um museu social que faz uma auto-representação da favela da Maré. É o único a apresentar a história da cidade carioca a partir da periferia.

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