Para esse segundo conteúdo da série, nós, do Lei.A, fomos entender como as culturas indígenas são impactadas pelo histórico processo de expulsão das terras e consequente dispersão dos povos para outros territórios
Saiba por que o patrimônio cultural brasileiro tem escassas referências indígenas e como os instrumentos de proteção podem agir em favor da memória dos povos
As memórias de um horror da Ditadura Militar brasileira: o Reformatório Krenak e a Fazenda Guarani
“O usufruto exclusivo do território, sobre o qual fala a Constituição, vai muito além do estar lá, presente fisicamente. Ele fala de uma pertença que é espiritual. Ela é de um tamanho que a gleba, o pedaço de terra, não consegue explicar”.
A fala é de Avelin Kambiwá, 42 anos, socióloga, nascida na Terra Indígena Kambiwá Baixa da Alexandra, entre os municípios de Inajá e Ibimirim, no sertão de Pernambuco – mas há 30 anos vivendo em Minas Gerais.

Avelin chama atenção para um ponto que geralmente fica em segundo plano na discussão sobre o Marco Temporal: o histórico processo de apagamento das culturas originárias do Brasil vinculado aos deslocamentos compulsórios. Culturas que, aliás, ainda não receberam o devido reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro.
RELEI.A: clique aqui e saiba mais sobre o conceito do “Marco Temporal”, o qual explicamos com detalhes e de forma didática no primeiro conteúdo desta série especial.
Por que a preservação dos modos de vida dos povos indígenas, dos seus saberes, fazeres, celebrações, de seus lugares de referência, pressupõe a garantia do direito à terra? É isso o que nós, do Lei.A, fomos procurar saber, por meio de diversos ângulos, no segundo episódio da série sobre o Marco Temporal.

Indígenas e pesquisadores ouvidos pelo Lei.A são unânimes em afirmar que a tese do Marco Temporal traz de volta, em grau inédito de violência, o apagamento cultural como política de Estado. É o roteiro “clássico” do extermínio à brasileira: expulsão do território, fragmentação dos grupos e dispersão dos indivíduos.
Revisitamos o processo de construção do patrimônio cultural brasileiro para tentar entender a razão do escasso reconhecimento das referências indígenas enquanto símbolos da identidade nacional. E como os instrumentos de proteção podem ser usados para preservar as culturas indígenas.
Afinal de contas, por que tanto se ensina nas escolas que o território brasileiro era totalmente habitado apenas pelos indígenas, e séculos depois, não se admite – ou se protege – essa herança, essa origem, esse domínio, essa pertença como sendo de todos?
Por outro lado, os horrores do Reformatório Krenak e da Fazenda Guarani, prisões clandestinas destinadas a privar indígenas da liberdade, no período da Ditadura Militar (1964-85), foram reconhecidos pela Justiça como violação de Direitos Humanos. O Estado brasileiro foi condenado a reparar o apagamento cultural dos indígenas. Mas como reparar a perda da história?
Nas periferias dos grandes centros urbanos, que outrora eram territórios indígenas, via de regra submetidos à situação de vulnerabilidade social, milhares de povos originários preservam, mesmo privados de seu espaço vital e de sua comunidade, a chama viva da cultura estritamente brasileira contra o apagamento. Como ela resiste é o tema deste segundo conteúdo da série especial do Lei.A. #Conheça #Monitore #Aja
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“Indígena sem comunidade adoece”

Foto: Povo Kambiwá
Uma vez por ano, Avelin Kambiwá deixa Belo Horizonte a caminho da Terra Indígena Kambiwá Baixa da Alexandra, em Pernambuco, para os rituais e para visitar os parentes. Há 30 anos na capital mineira, ela conhece como poucos a vida do indígena deslocado, recém-chegado no centro urbano, sem comunidade e sem meio de sobrevivência.
Por falta de escolha, eles vão viver em favelas, áreas de risco e terrenos degradados, perdendo gradativamente o contato e os vínculos com as práticas culturais tradicionais. “Em terra alheia, é muito difícil manter usos e costumes. Por isso a gente se reúne em coletivos. Porque a gente precisa de comunidade. Sem comunidade, a gente adoece, enfraquece, entra em depressão”, explica Avelin. “Vai trazendo um cansaço, dar conta de estar sobrevivendo, e longe do seu território, sozinho”, diz.

A Feira Indígena & Imigrante Aby Ayala funciona desde abril de 2022, sempre às quintas-feiras, das 9h às 17h, na praça Afonso Arinos, região centro-sul de BH, com 14 barracas de artes indígenas e duas de gastronomia. A feira foi idealizada pelo Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas (CMACI). Foto: @feiraabyayala.
Segundo ela, a tese jurídica do Marco Temporal, se vencedora, vai acelerar o processo de apagamento da cultura e do pertencimento dos povos indígenas. “Ele (processo de apagamento), que já se dá na cidade com mais facilidade, vai acontecer de fato, porque você não vai ter uma Terra Indígena demarcada. Não tem para onde voltar”, explica. A terra, no caso, não é apenas o lugar físico no espaço. É outra coisa.
O usufruto exclusivo do território, sobre o qual fala a Constituição, vai muito além do estar lá, presente fisicamente. Ele fala de uma pertença que é espiritual. Ela é de um tamanho que a gleba, o pedaço de terra, não consegue explicar”. O rompimento dessa relação com a terra, e a dispersão da comunidade, diz Avelin, são os eixos do projeto de apagamento cultural.

Em Belo Horizonte, a forma encontrada para enfrentar o desamparo e resistir foi a reunião das etnias em coletivos. O Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas reúne mais de 20 etnias, inclusive de povos indígenas estrangeiros, como os Warao venezuelanos e os Quechua, do Peru, cujo primeiro objetivo é buscar, além do apoio mútuo, um senso de comunidade aos deslocados.
“A grande força do movimento indigena são as retomadas, que vão desde a retomada de território, a retomada étnica, a retomada de lugares de decisão como, por exemplo, ocupar lugares na política.” AVELIN KAMBIWÁ
Outro instrumento são as “retomadas”, que não se restringem à ocupação de áreas tradicionais, mas também ao registro da cultura, ao reencontro com a língua, com os rituais e às práticas ancestrais dos povos.
“A retomada é um movimento revolucionário de fortalecimento do direito à terra ancestral. O direito à minha ancestralidade. O direito ao reconhecimento daqueles que vieram antes e daqueles que virão depois. O direito de toda uma geração que não vai perder o seu vínculo com a sua espiritualidade, seu pertencimento étnico”, diz.
Confira o depoimento de Avelin Kambiowá ao Lei.A.
Pertencer à natureza
Em “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak nos fala do pertencimento dos povos originários à natureza. Segundo ele, durante muito tempo, “fomos alienados desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade”.
No campo do patrimônio cultural é muito comum a expressão “sentimento de pertencimento”, seja em relação a um lugar ou a uma comunidade. Dentre os diversos ensinamentos que os povos indígenas trazem no campo patrimonial, está a noção de indissociabilidade entre as dimensões material e imaterial, e a integração entre os humanos e os outros seres ao meio em que vivem.
“O pertencimento das pessoas se dá com o todo. Nós, ocidentais, é que tendemos a fragmentar em distintas esferas do patrimônio. E esses diferentes patrimônios, de certa forma, reiteram uma separação problemática entre natureza, de um lado, e cultura, do outro”. Quem fala é o arqueólogo, Igor Rodrigues, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Em sua tese de doutoramento, defendida no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), Igor Rodrigues foi buscar os ensinamentos dos povos Waiwai, que habitam a região do rio Mapuera, no Noroeste do Pará, tributário do rio Trombetas, que deságua na margem esquerda do Amazonas.
“Na minha visão, o pertencimento dos povos indígenas no Mapuera ocorre nas diferentes formas de se estabelecer relações. Relações não somente com músicas, danças, grafias, dentre várias outras expressões de saberes técnicos e artísticos, mas também com diversos aspectos da paisagem, como rios, cachoeiras, montanhas, roças, aldeias antigas”, diz.
Classes de trançados. A peça C é Tiriyó, modelo idêntico ao Wai Wai. Fotos A e B: Värlskulturmuseet (2019a; 2919b), CC BY Värls-kulturmuseet; fotos C, D e G e desenhos E, F e H: Igor M. Mariano Rodrigues.
Direito à terra, direito à cultura
Igor Rodrigues pesquisa a atividade dos trançados indígenas, categoria pouco estudada no campo da arqueologia, uma vez que os trançados e as cestarias são perecíveis, não sendo sempre encontrados nos sítios arqueológicos. “Os trançados são perecíveis, mas eles são persistentes”, defende o pesquisador.
E essa persistência, diz ele, é fundamental para a própria reprodução da vida humana, e não humana, dentro do território indígena. “Para que esse saber-fazer possa continuar, é preciso saber interagir adequadamente, com cuidado, em relação aos próprios lugares onde esses vegetais existem e gostam de viver”.
“Os povos originários, junto com outros seres, compõem esse território-herança, ou território-patrimônio. Os povos são os territórios. É uma coisa só. Não tem como tirar eles daqui e colocar em outro lugar. Cada povo tem uma relação com o ambiente, uma herança, que é deles.” IGOR RODRIGUES
Segundo o pesquisador, os órgãos licenciadores, por exemplo, não alcançam essa interatividade entre os diversos seres e o meio no qual vivem. Há uma fragmentação nas análises empreendidas pelos órgãos ambientais, diz ele, que “separa componente cultural, de um lado, e natural, de outro”. Por isso, “os estudos não conseguem ter uma dimensão real do impacto”.
Questionado sobre a tese do Marco Temporal, segundo a qual os indígenas só teriam direito à posse de territórios por eles ocupados em 5 de outubro de 1988, o pesquisador diz que ela “só serve para amplificar a crise social e ambiental”.
“É criminoso. Você está tirando o direito à vida de muitas pessoas. A ocupação indígena aqui é milenar, extensa. Tomar um marco temporal depois de 500 anos de invasão constante, de ataque aos povos originários, é simplesmente reforçar o extermínio”, afirma.
O professor ainda alerta para o fato de que a “separação presente-passado pode ser muito injusta e perversa. Ela pode levar à sustentação de que os povos do presente não são herdeiros dos povos do passado”. Confira o depoimento do arqueólogo Igor Rodrigues ao Lei.A.
Presença indígena no patrimônio cultural brasileiro
O primeiro bem registrado como patrimônio imaterial no país, de referência indígena, foi a Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, sistema de representação gráfico dos povos indígenas Wajãpi, do Amapá, que vivem na Terra Indígena Wajãpi, homologada desde 1996.
Para decorar corpos e objetos, os Wajãpi fazem uso dos elementos encontrados na natureza: tinta vermelha do urucum, suco do jenipapo verde e resinas perfumadas.
“A arte Kusiwa, não é apenas nossa. É do mundo, dos peixes, das casas e dos outros” – fala do cacique Kasipirina durante a revalidação do registro da Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, em 2017. Fotos: IPHAN
A Arte Kusiwa foi registrada como patrimônio cultural brasileiro em 2002 (com revalidação do título em 2017), dois anos após a promulgação do Decreto no 3.551, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro.
Em 2003, a Arte Kusiwa foi reconhecida pela Unesco como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, e como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, em 2008.
Apesar dos esforços para a proteção de bens imateriais indígenas, observados nas décadas passadas, a dimensão material permanece como foco das ações de preservação em âmbito federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sem o devido reconhecimento de bens indígenas. Assim tem sido desde o início do processo de institucionalização do patrimônio cultural brasileiro.

Desde a criação do Iphan (antigo Sphan), em 1937, e a instituição do tombamento (Decreto-Lei no 25/1937), o estabelecimento desses marcos do patrimônio cultural brasileiro esteve voltado aos monumentos arquitetônicos “de pedra e cal”, justificado pelo avanço da urbanização e os riscos de destruição dessas edificações encontradas, por exemplo, nas ditas cidades históricas mineiras.
Foram priorizadas as igrejas católicas, casas de câmara e cadeia, fortes e outras estruturas de poder que simbolizam as classes dominantes, as elites sociais, os agentes do poder e o Estado – as instituições do homem branco, católico e colonizador. Não foram incluídos bens materiais de origem indígena ou de matriz africana na fase inicial de patrimonialização do Brasil.
Ou seja, até mesmo o conceito e a política pública de proteção aos bens culturais (materiais e imateriais) no Brasil já nasceram reforçando o apagamento das culturas dos povos originários.

Terreiro da Casa Branca, em Salvador. Foto: Egi Santana/G1
A partir da década de 1980, os movimentos sociais de luta pela redemocratização tiveram papel fundamental na ampliação da ideia de patrimônio cultural.
O tombamento do Terreiro da Casa Branca, Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em Salvador, em 1986, foi emblemático quanto ao uso do instrumento de proteção a favor de grupos não dominantes. Outro marco dessa ampliação conceitual é a própria Constituição Federal de 1988.
Mas todo esse lento reconhecimento das contribuições culturais dos povos originários, que mal tinha entrado na agenda patrimonial das instituições, será imediatamente impactado caso a tese do Marco Temporal seja convalidada.
#monitore

Conflitos territoriais e impactos nas práticas culturais
Como vimos no primeiro episódio da série, o povo Krenak, um dos tantos chamados de ‘Botocudos’ pelos portugueses, foi submetido a um longo processo histórico de violências, do encontro com o colonizador à abertura da Estrada de Ferro Vitória a Minas (1900) – e, mais recentemente, o desastre ambiental sobre o Rio Doce causado pelo rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana, em 2015.
Outro marco histórico dessa violência foi o Reformatório Krenak, mistura de prisão clandestina, campo de trabalhos forçados e centro de tortura da época da Ditadura Militar (1964-85), que funcionou numa área de 4 mil hectares no município de Resplendor/MG, entre 1969 e 1972. Como veremos adiante, a instalação e a ação da Guarda Rural Indígena (Grin) levaram o Estado brasileiro à condenação por violações de Direitos Humanos.
O Reformatório recebeu, ao menos, 94 indígenas de mais de 15 etnias, das cinco regiões do país, como Karajá, Campa, Maxacali, Fulni-Ô, Canela, Kaiowá, Pankararu, Kaingang, Pataxó, Xerente, Terena, Kadiwéu, Bororo, Urubu, Krahô e Guajajara. Documentos e depoimentos colhidos pelo Ministério Público Federal (MPF) dão uma ideia dos horrores.

Segundo o testemunho de José Cecílio Damasceno em documentação do MPF (p. 535 e 540), “o capitão Pinheiro mandava bater nos índios. Os presos trabalhavam durante todo o dia, de sete às cinco. Os indíos produziam e o capitão Pinheiro ficava com toda a produção, que era vendida na feira”.
O capitão, no caso, é Manoel Santos Pinheiro, oficial encarregado, sobre quem pesam diversas denúncias. De acordo com o relato de Douglas Krenak (p.527), “se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres”.
Também foram encontrados documentos com relatos de trabalhos forçados, como, por exemplo, comunicações sobre o envio de índios confinados no Reformatório Krenak para “prestar serviços” no Posto Indígena Engenheiro Mariano de Oliveira, em Machacalis, a 450 quilômetros de distância, já próximo à fronteira da Bahia.
Transferidos para a Fazenda Guarani, em 1972, as violações continuaram. No ofício N° 017/72 (3/2/72), o responsável comunica que estavam esgotados “todos os gêneros alimentícios, não temos banha e nem sal, os índios confinados estão alimentando-se de pura mandioca e inhame sem tempero”. Dias depois, no de N° 031/72 (25/2/72), o pedido, com urgência, é por “roupas e calçados para os índios confinados, pois os mesmos estão todos sem roupa”.
Apagamento cultural como política de Estado
Em 13 de setembro de 2021, a juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves, da 14ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de MG, condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Estado de Minas Gerais por graves violações dos Direitos Humanos de povos indígenas ocorrida durante a Ditadura Militar (1964-85), em referência ao Reformatório Krenak. A condenação se estende à atuação da Guarda Rural Indígena (Grin) e à transferência dos Krenak, em 1972, para a Fazenda Guarani, em Carmésia.
“Na Fazenda Guarani não tinha sequer rio e o clima era completamente diferente, muito mais frio do que o da terra que sempre ocuparam antes de serem expulsos. (…) O velho Jacó não aguentou e morreu, quando contava aproximadamente 72 anos de idade. O índio Jacó teria morrido apaixonado, por ter sido obrigado a abandonar sua terra.” TRECHO DA SENTENÇA DA JUÍZA ANNA CRISTINA ROCHA GONÇALVES
A União, a Funai e o Estado de Minas Gerais foram condenados a reconhecer os crimes, incluindo um pedido de desculpas público, além da demarcação da Terra Indígena Krenak no Parque Estadual de Sete Salões. A magistrada também mandou dar publicidade aos documentos juntados e, por fim, impôs à Funai e ao Estado de Minas Gerais ações para o resgate e a preservação da memória do povo Krenak.
Na decisão, a magistrada determinou que os réus implementem, junto com o povo Krenak, ações voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena – abrindo um precedente importante no campo jurídico.
Pataxó Hãhãhãe: guardiães de muitas identidades
Os Pataxó Hãhãhãe, originários do Sul da Bahia, onde foram aldeados junto de outras etnias pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 1910, incorporaram seis povos dizimados, com quem dividiram o Posto Indígena Caramuru, no Sul da Bahia, até 1936. Além dos próprios Pataxó Hãhãhãe, o etnônimo engloba as etnias Baenã, Kamakã, Tupinambá, Kariri-Sapuyá e Gueren.
“É uma mistura de povos. Um povo construído de muitas etnias. Para nós, compor com outras etnias é muito rico. Não compomos uma só tradição, uma cultura, uma língua e etnia. É muito honroso a gente poder ter essa diversidade de povos e línguas. Transformou numa cultura só”, nos diz a cacica Ãngoho, da Aldeia Katurãma, em São Joaquim de Bicas, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
“(União de etnias) Se ajuda a preservar a cultura? É um resgate ancestral de vários povos num povo só. A comunidade só tem a ganhar construindo esse DNA, com outras etnias compondo. Você aprende a ‘sobreviver’ as tradições.” CACICA ÃNGOHO
Parentes de Galdino, o índio Pataxó queimado vivo enquanto dormia num ponto de ônibus em Brasília, em 1997, a família de Ãngoho migrou da Terra Indígena Coroa Vermelha, em Porto Seguro, para Belo Horizonte, em busca de melhores condições de vida. Sonhavam em viver da venda de artesanato na capital mineira, mas as coisas não saíram como o planejado.
Os Pataxó Hãhãhãe sofreram diversos episódios de violência policial, foram viver em áreas de risco na RMBH e um tio da cacica foi assassinado. Em 2017, conseguiram se instalar num terreno que pertencia à mineradora EBX, às margens do rio Paraopeba. A aldeia Naô Xohã, como foi chamada, foi destruída pelo rejeito de minério da barragem da Vale, na mina do Feijão, em Brumadinho, em 2019.

Atualmente instalada com 20 famílias na Aldeia Katurãma, em terreno doado pela Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira, Ãngoho relata inúmeras dificuldades que seu povo ainda enfrenta, tendo de sobreviver, sem apoio oficial ou da Vale, à custa de doações. A vida comunitária e produtiva do grupo, suas atividades rituais e de subsistência, foram destruídas com o colapso do rio Paraopeba.
Ao mesmo tempo, ela se orgulha do que já conseguiram reerguer, como a escola bilíngue da Aldeia Katurãma, onde a grade curricular é composta de disciplinas da tradicionalidade indígena, como línguas brasileiras, botânica medicinal, usos do território, entre outros. “É a primeira aldeia particular do Brasil. A Katurãma não entra no Marco Temporal”, disse, orgulhosa, uma vez que o terreno foi doado.
Perguntamos, afinal, o que ela pensa a respeito da tese do Marco Temporal e sobre como ele vai afetar a preservação da identidade e da cultura dos povos indígenas do país, como os próprios Pataxó Hãhãhãe, guardião de tantas ancestralidades. “Nós não chegamos em 1988”, respondeu de pronto. Confira o depoimento da cacica Ãngoho.
O patrimônio cultural como resistência
As estratégias para preservar as tradições e modos de vida indígenas são as mais variadas. A oralidade, por exemplo, é a forma mais comum de transmissão da experiência e da ancestralidade para as novas gerações, mas está longe de ser a única. Os casamentos interétnicos são outra forma de os povos ameaçados tentarem garantir a proteção às referências culturais de grupos e famílias.
Os Maxakali, habitantes do Nordeste de Minas Gerais, entre os vales do Mucuri e do Jequitinhonha, são conhecidos pela tenacidade de sua resistência cultural. O grupo indígena resiste a incorporar a cultura do branco, inclusive a econômica. Antes, mantém intensa vida ritual e preserva o uso da língua própria, restringindo o português aos contatos interétnicos.

Entre as diversas estratégias utilizadas para garantir o direito à cultura e à memória dos povos, diante da apropriação de seus territórios de origem, estão também os instrumentos institucionais de preservação do patrimônio.
Publicado em 2020, pelo MPF, o documento Memória da Terra, escrito pelo arquiteto e urbanista Paulo Tavares, é resultado de estudo para a obtenção de reparação de danos materiais e morais sofridos pelo povo Xavante de Marãiwatsédé, no estado de Mato Grosso, devido à remoção forçada de seu território originário em agosto de 1966.
“A negação da existência ancestral indígena nessa região e, por consequência, a negação dos direitos territoriais dessas comunidades, ato que também significa expropriar-lhes a história e a memória, constituem uma forma de perpetuar a política do apagamento por outros meios.” PAULO TAVARES | DOCUMENTO “MEMÓRIA DA TERRA”
Cartografias da violência
O documento traz um parecer detalhado sobre o processo de deslocamento compulsório a que essa população foi submetida, durante décadas, para que empreendimentos agropecuários e obras de infraestrutura fossem instalados em suas terras.
O texto foi produzido com o objetivo de prover subsídio pericial ao Inquérito Civil Público 1.20.004.000072/2014-82, movido pelo Ministério Público Federal – Procuradoria da República do Município de Barra do Garças.
O acervo documental compilado e analisado inclui uma série de cartografias inéditas identificando antigos assentamentos Xavante, oferecendo um corpo irrefutável de evidências da ancestralidade da ocupação indígena no território de Marãiwatsédé.


Aldeia Sõrepré, antigo centro geopolítico e cultural do território A’uwe-Xavante (13º 3’19.77”S 51º 43’44.83”W). A primeira é uma fotografia aérea do Projeto KH-9/Hexagon, desenvolvido pelos E.U.A. entre 1971-1987; e a segunda imagem, contemporânea, mostra que a formação de árvores cresceu seguindo a forma em arco da antiga aldeia em meio a um entorno devastado pelo agronegócio. Fonte: TAVARES (2020).
Também foi protocolado no Iphan um documento chamado “Árvores, Palmeiras, Florestas e Outros Monumentos Arquiteturais”, requerendo o reconhecimento patrimonial das antigas aldeias Xavante. “O documento foi desenhado como uma forma de intervenção neste arquivo, contestando as bases coloniais que definem o que entendemos por arquitetura tradicional-patrimonial”, diz Paulo Tavares. “No fundo, trata-se de desafiar a própria definição de arquitetura tal como concebida pelo pensamento colonial-ocidental. Árvore ruína, floresta arquitetura, terra patrimônio”.
#aja
Esse foi o segundo conteúdo da “Série Lei.A | Marco Temporal”. Se você chegou até aqui e se sentiu responsável por também agir, nós separamos algumas sugestões.
Supremo Tribunal Federal – Como dito, o Marco Temporal está sendo julgado pelo STF. Então, você pode ficar atento à movimentação. O Tribunal oferece informativos sobre suas pautas. O serviço é disponibilizado pela Coordenadoria de Multimeios do Tribunal. Para se cadastrar e receber diariamente as notícias publicadas, acesse o endereço http://j.mp/pushSTJ e digite seu e-mail. Ao receber o e-mail de confirmação, clique no link e aceite o cadastro. A assinatura é ativada imediatamente.
Câmara dos Deputados – Já na Câmara dos Deputados, O Projeto de Lei Complementar 490/2007, que também trata da demarcação de TIs, está pronto para votação. Você também pode monitorá-lo. Basta se cadastrar para receber as notificações de discussões e votações na Casa. Clique aqui para acessar o site da Câmara e fazer seu cadastro.
Conheça quem discute o tema com profundidade – Grupos já consolidados como a Articulação dos Povos indígenas do Brasil (Apib), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Centro de Estudos Ameríndios (CEstA), Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Instituto Socioambiental, KANINDÉ – Associação de Defesa Etnoambiental, Operação Amazônia Nativa (OPAN) oferecem informações apuradas com responsabilidade sobre o tema.
Fortaleça os projetos que buscam mudança – Se você sentiu afinidade com os temas e com as pessoas entrevistadas para esta série, busque saber mais sobre os projetos que elas fazem parte, acompanhe nas redes sociais, divulgue na sua rede de contatos. Existem diversos grupos de comunicação popular que oferecem perspectivas de quem vive na pele os conflitos relacionados aos povos indígenas. O Mídia Índia, o Coletivo Tibira, o Vozes da Floresta e o Coletivo Visibilidade Indígena são alguns exemplos para quem quer começar a conhecer.
Leia autores e autoras indígenas – Representantes de povos originários tem muito a dizer sobre este tema e muitos outros. Com as mais diversas abordagens, autores como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Eliane Potiguar, Carlos Tiago Hakiy e Graça Graúna, Olívio Jekup e Eliane Boroponepa nos oferecem uma tremenda contribuição literária e histórica.
Aposte na comunicação ambiental – Nós, do Lei.A, produzimos e lançamos um guia colaborativo, em formato de e-book, chamado “Guia Comunicação Ambiental e Mobilização Popular”. O material é pensado para as pessoas que querem agir por alguma causa socioambiental, mas não sabem por onde começar.
Compartilhe este conteúdo – Indique para aquele amigo ou aquela amiga que pode se interessar pelo tema, ou se incomodar com ele. Fazer chegar mais longe conteúdos feitos de forma responsável é uma ótima forma de colaborar com o mundo!
Siga o Lei.A para receber os próximos conteúdos dessa série especial – No próximo capítulo dessa série especial “Marco Temporal: como furar a bolha da temática indígena”, vamos falar sobre as dificuldades, erros e acertos dos comunicadores em tentar popularizar a temática indígena para além da bolha dos movimentos ambientalistas. Até que ponto essa invisibilidade, esse apagamento cultural e os perigos da tese jurídica do Marco Temporal realmente estão sendo assimilados pela população brasileira?