Em série especial, nós, do Lei.A, convidamos você a saber mais sobre esse tal “Marco Temporal”, que ameaça o futuro das Terras Indígenas no Brasil
Julgamento no STF e projeto no Congresso podem anistiar o Estado por massacres e remoções; você sabia que MG é destino secular de índios desterrados?
De uma população estimada entre 2 milhões e 3 milhões de pessoas no momento da chegada do colonizador, pouco mais de 300 mil indivíduos viviam em Terras Indígenas no Brasil em 1998, segundo dados do IBGE.
Hoje, quase 35 anos depois da Constituição de 1988, cerca de 1,1 milhão de pessoas residem em áreas indígenas. A Carta Magna tem grande responsabilidade nisso: ao atribuir aos indígenas o “direito originário” sobre o território, ela impôs à União o dever de demarcar suas terras.

Essa concepção, contudo, está em xeque tanto no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do julgamento de uma reintegração de posse, quanto no Congresso Nacional, por meio do PLC 490/2007, que está pronto para votação em Plenário na Câmara dos Deputados.
Em comum, a tese de que as demarcações indígenas devem se limitar às terras ocupadas pelos povos em 5 de outubro de 1988 – quando foi promulgada a Constituição. É o chamado “Marco Temporal”.

Por um lado, seus defensores arrogam-se da defesa da segurança jurídica, pois terras já ocupadas poderiam ser objeto de desapropriação para demarcação de territórios reclamados pelos índios como tradicionais.
De outro, indígenas e pesquisadores, muitas vezes escorados em farta documentação, argumentam que muitos povos não ocupavam os territórios tradicionais em 1988 pela simples razão de que alguém os tirou de lá – na maioria das vezes, no caso, o próprio Estado.
Ou seja, pelo Marco Temporal, o Estado se exime das consequências, contextos e conflitos oriundos dos desterramentos anteriores a 1988. E a tese ainda poderá ser usada como justificativa para a revisão do processo de algumas demarcações de Terras Indígenas (TIs) já consagradas. Por trás disso está a falsa tese de que já existe muita terra para povos indígenas no Brasil.

Nesta Série Especial, nós, do Observatório Lei.A, fomos entender as repercussões do Marco Temporal na vida dos povos em Terras Indígenas e também na dos que ainda lutam pela demarcação. O ponto de partida? A diáspora indígena por Minas Gerais.
Das mais de vinte etnias que vivem atualmente no estado, apenas nove são “originárias” do território. O corredor “mineiro-baiano”, cenário do conteúdo de hoje, foi palco de conflitos ininterruptos e, por isso, de intenso fluxo migratório – dos tempos coloniais à abertura das novas fronteiras do “progresso”, já no século 20.
Nós, do Lei.A, contamos a história desse fluxo indígena entre o Nordeste e Minas, e de como a situação atual desses povos joga luz sobre a discussão do Marco Temporal, suas consequências humanas e ambientais. O desterramento, dizem os índios, rompe o pacto constitucional, apaga a memória e destrói a cultura dos povos brasileiros.
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O Julgamento no STF
Em 23 de junho de 2022, o STF retomará o julgamento que decidirá o futuro das demarcações das Terras Indígenas no Brasil. A corte vai definir as regras jurídicas aplicáveis às relações de posse de áreas de tradicional ocupação indígena, conforme a Constituição.
E por que se está julgando isso? Em 2009, o Estado de Santa Catarina requereu a reintegração de posse de uma área na Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, ocupada por 100 indígenas da etnia Xokleng, que a reivindicam como território tradicional – já reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e em processo de demarcação.
Em 1ª e 2ª Instâncias, a Justiça deu ganho de causa ao Estado para remover os índios. A segunda decisão, especificamente, diz que a área está abrangida pela Portaria nº 1.128/2003 do Ministro da Justiça, segundo a qual, até que seja concluída a demarcação, os proprietários exercem posse legítima da terra, não podendo dela ser retirados sem o devido processo legal.
A Funai recorreu ao STF, alegando que a área em discussão é de ocupação tradicional dos indígenas, devidamente comprovada, de modo que as decisões anteriores teriam violado o direito originário dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, previsto no artigo 231 da Constituição.

Para a Funai, a relação entre a terra e o indígena não depende de título ou reconhecimento formal. O direito às terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade indígena é imprescritível, ou seja, não tem prazo para ser reclamado, além de inalienável e indisponível, isto é, não pode ser cedido.
O recurso tem o número RE 1.017.365 / SC e tem como relator o ministro Luís Edson Fachin, que, em julgamento com os demais ministros, classificou o tema como de repercussão geral (Tema 1031, STF). Ou seja, o que for decidido vai influenciar processos de demarcação em andamento – ou colocar áreas já homologadas sob risco, se a tese do Marco sair vencedora.
Fachin, em seu voto, rejeitou o Marco Temporal sob a justificativa de que “O procedimento demarcatório não constitui Terra Indígena em nenhuma de suas fases, mas apenas reconhece a existência da posse tradicional preexistente”. Clique aqui e leia a íntegra do voto do relator e ministro Fachin.
Já para o ministro Nunes Marques, que votou a favor do Marco, sem ele os indígenas teriam o “direito de expandi-las ilimitadamente para outras áreas já incorporadas ao mercado imobiliário nacional”. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes.

E eu com isso?
Na prática, o Marco Temporal anistia o Estado causador de deslocamentos e ratifica a apropriação violenta e ilegítima desses territórios. Não custa lembrar: até 1988 os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não podiam reclamar seus direitos diretamente à Justiça.
O Marco Temporal também pode estimular ações judiciais para anular demarcações anteriores e, assim, trazer de volta conflitos em regiões já homologadas, incentivando novos ciclos de invasão, sobretudo na Amazônia. Além de serem indispensáveis à sobrevivência física e cultural dos povos, as TIs têm papel central na conservação.
Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), na Amazônia, maior bioma brasileiro, 20% da floresta foi desmatada nos últimos 40 anos, enquanto nas TIs o índice foi de 2,4%. As 424 áreas indígenas na Amazônia Legal ‘transpiram’ 5,2 bilhões de toneladas de água diariamente, e retêm 13 bilhões de toneladas de carbono. Noutras palavras, são insubstituíveis para a regulação climática e hidrológica do planeta.

#Monitore
A diáspora indígena por Minas Gerais

No Brasil, há pelo menos 305 povos indígenas e 274 línguas. Em Minas Gerais, estima-se que existam aproximadamente 20 etnias, mas por falta de consenso nos dados fornecidos por instituições oficiais e indígenas, nós, do Lei.A, não podemos afirmar ao certo quantas são elas. Todas elas seriam do tronco linguístico Macro-Jê e Tupi-Guarani (Guarani), formando uma população de aproximadamente 20 mil indivíduos, grande parte em centros urbanos – cerca de 50% do total, por exemplo, apenas na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Além das etnias documentadas, há relatos de indivíduos e núcleos familiares dispersos por centros urbanos, como Belo Horizonte e Uberlândia, de etnias diversas, oriundas de todas as regiões do Brasil e mesmo de outras nações, como os Warao, venezuelanos, e o Quechua, do Peru. Este quadro dinâmico dos deslocamentos demonstra a importância de políticas e investimentos em pesquisas junto aos povos originários para atualização constante dos dados.
Maria Hilda Baqueiro Paraíso, professora do departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), trabalha com populações indígenas desde 1971. Ela foi responsável por laudos de demarcação de TIs de personagens centrais da história desta série: os povos Krenak, Maxakali e Xacriabá, em Minas Gerais, e Pataxó-Hã-Hã-Hãe, na zona cacaueira do sul da Bahia.
“Quando você trabalha com as comunidades, em casos de laudos periciais, há problemas. Porque muitas dessas comunidades passaram por um processo brutal de descaracterização, de perda de território, de desrespeito, de necessidade de sobreviver”
Maria Hilda Baqueiro Paraíso
Segundo ela, isso exige, por parte do antropólogo que faz o laudo, um trabalho cuidadoso de levantamento de documentos, que nem sempre são encontrados com facilidade. “Então você tem que trabalhar em cima do ‘por quê’ eles não estão mais lá, e isso implica exatamente numa reconstituição histórica do conflito, das relações e das dificuldades que justificam eles não estarem lá”, explica.
E o que acontece se a reconstituição não é possível? “Para aqueles que não conseguem atingir esse direito de serem reconhecidos como senhores das terras, a situação fica muito complicada, em todos os sentidos. Porque você tem o crescimento populacional, e uma dispersão, fazendo com que as pessoas tenham que sair de suas áreas e procurar outros espaços onde possam sobreviver”.
O mapa da mina: o caminho dos rios
O devassamento interior do território, após a fixação inicial do colonizador na zona costeira, se deu pelo curso dos rios, período marcado por conflitos, intensa escravização de populações indígenas e alto índice de mortandade. Como todos os rios que nascem em Minas, exceto o rio Doce, desaguam na Bahia, os cursos d’água serviram como caminhos naturais de penetração.
A partir do século 18, com a descoberta de ouro, proibiu-se a circulação de pessoas entre a Bahia, o Espírito Santo e Minas Gerais, criando uma “zona tampão”, onde os índios puderam se refugiar dos conflitos iniciais. Com o declínio do ouro, a zona foi aberta para a exploração de outras atividades. Em 1808, d.João VI libera a “guerra justa”, isto é, o combate ao índio para a “limpeza” do território.
Segunda Maria Hilda Baqueiro Paraíso, foram criadas divisões militares, sete no total, sempre em torno dos cursos d’água, do rio Pardo ao Jequitinhonha, tanto no sentido Oeste-Leste, como Norte-sul, até a Bahia, para dar combate aos índios – momento de intensa dizimação e escravização das populações a serviço dos quartéis.
Confira a explanação da historiadora Maria Hilda Baqueiro Paraíso (UFBA).
O aldeamento de Itambacuri: terra Aranã
Noutras áreas, os povos indígenas, fugindo da dizimação, foram submetidos aos “Aldeamentos” – que nada têm a ver com “aldeias”, sendo mais parecidos com internatos de aculturação, servidão e acautelamento de povos de diversas etnias. Em 1872, o governo brasileiro nomeou Frei Serafim de Gorízia, um austríaco, para catequizar os índios nas colônias do Mucuri.
No ano seguinte, próximo ao município de Filadélfia, atual Teófilo Otoni, foi fundado o Aldeamento de Itambacuri, numa região de floresta densa, só habitado por uns poucos povos, como Potão, Crakeatan, Mucuriñ e Aranãs – estes já vindos deslocados de outro aldeamento, o Central Nossa Senhora da Conceição do Rio Doce, onde a maior parte foi dizimada por epidemias.
Os Aranãs são um dos muitos grupos conhecidos como ‘Botocudos’, devido aos botoques nas orelhas e lábios, que habitavam o grande território expandido entre o Sul da Bahia, o Norte de Minas e o Vale do Rio Doce, até o Espírito Santo. Os Aranãs se distinguiam dos outros grupos de ‘Botocudos’, no entanto, por pequenas variações linguísticas, reafirmando, assim, sua peculiaridade e autonomia.
Os aldeamentos prometiam o fim do terror de massacres e incursões violentas a partir do convívio com a “civilização”, mas a memória do povo Aranã, comunicada por gerações, conta uma outra história: separação entre filhos e pais, irmãos e irmãs; “doação” de crianças indígenas para de obra não remunerada em fazendas; apagamento do nome, da região e da língua. Em suma, o sequestro da origem.
Marden Cibele Índia Sicupira nos contou um pouco mais sobre a resistência da memória e a busca pela história do povo Aranã.
O “desenvolvimento” retalha o território tradicional
Onde houve esforço de colonização e de construção de infraestrutura, houve choque e deslocamento indígena pelo corredor fluvial mineiro-baiano. Há casos como o de Teófilo Otoni, onde houve chegada (e posterior resgate) de imigrantes europeus, mas também a chegada de infraestrutura, como a Estrada de Ferro Vitória a Minas, no início do século 20, que causou grande mortandade entre o povo Krenak.
Entre 1910 e 1920, foi a vez dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, povos nômades das florestas do Sul da Bahia, até então sem contato com a vida nacional, serem aldeados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Junto com diversas outras etnias – como Kamakãs, Baenãs e Gueréns, entre outros –, foram limitados ao Posto Caramuru, o sucessor laico dos aldeamentos, reservado aos índios em processo de desterramento.
Se os enredos variam de povo a povo, o fim é sempre o mesmo: conflito e diáspora para Minas Gerais. Um pouco mais tarde, foi a vez dos Pataxós serem expulsos do território ocupado desde o século 19, no Sul da Bahia, devido a conflitos. A política de abertura de novas fronteiras agrícolas, e a criação do Parque Nacional do Monte Pascoal, em 1943, acirraram os atritos com fazendeiros e com o Governo Federal.
“Fogo de 51” na Imprensa Popular/Bahia (Fonte:Biblioteca Nacional). Consulte clicando aqui
Cacique Baiara Pataxó: testemunha do “Fogo de 51”
O conflito de 1936, envolvendo os Pataxós Hã-Hã-Hãe, que se rebelaram contra o aldeamento do SPI, já prenunciava a escalada dos conflitos no Sul da Bahia. Um ponto delimitador do grau de brutalidade contra as populações indígenas foi o chamado “Fogo de 51” – responsável pela diáspora de um grande contingente Pataxó para Minas Gerais.
Na noite de de 18 de maio de 1951, enquanto perseguia assaltantes que cometeram crimes em Corumbaú, a polícia baiana trocou tiros, e foi rechaçada pelo bando, próximo à aldeia Pataxó de Barra Velha. Acusados pela agressão, os índios foram atacados no meio da noite. A aldeia foi destruída e incendiada. As pessoas, massacradas. Muitos fugiram pelas matas e se separaram de suas famílias.
“Depois de tirotear a aldeia durante várias horas, incendiou todas as casas, aprisionou e espancou dezenas de homens, mulheres e crianças, levando-os para Caravelas. Os demais escaparam para a mata. O ‘capitão’ Honório, homem de 85 anos, foi espancado a coice de fuzis até ficar desacordado”.
Jornal Imprensa Popular (18/06/1951)
O cacique Baiara, que hoje vive na aldeia Geru Tucunã, em Açucena, no Vale do Rio Doce, Minas Gerais, vivia na aldeia Barra Velha na noite do “Fogo de 51”. Tinha então 10 anos de idade. Sua família foi toda separada. Só a partir de 1960 os Pataxós voltaram a se reorganizar para retornar às terras tradicionais, após a perda de 22,5 mil hectares para o Parque Nacional do Monte Pascoal, demarcado em 1961.
Grande parte deles, como Baiara, migraram para Minas Gerais, e alguns foram parar no Reformatório Indígena da Fazenda Guarani, uma das prisões clandestinas para índios da época da Ditadura Militar (1964-1985), em Carmésia, no Vale do Rio Doce, sobre cujos horrores falaremos adiante. Baiara nos contou algumas memórias desse tempo e da luta permanente do povo Pataxó em busca da terra.
Pankararu: do São Francisco aos porões
Cleonice Maria da Silva, ou Toá Kãnynã Pankararu, tem 75 anos, 50 deles vividos em Minas. Nascida na aldeia Brejo dos Padres, no médio São Francisco, estado de Pernambuco, Toá diz ter migrado não por desejo próprio, mas porque o território Pankararu foi invadido e, mais tarde, alagado para criar hidrelétricas – como as de Itaparica e de Paulo Afonso, da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
Os Pankararu se espalharam por vários estados brasileiros no século 20. No caso de Toá, ela migrou com a família para Minas, aos três anos de idade, em busca do avô, Antônio Ventania, preso no Reformatório Krenak – um campo de trabalhos forçados surgido em 1969, no antigo Posto Indígena Guido Marliere, no município de Resplendor, onde eram apenados, sem acusação ou julgamento, indígenas considerados desobedientes ou rebeldes.
Foto: Arquivo Pessoal / Toá Kãnynã Pankararu
“Meu avô trabalhava na roça quando perguntaram o nome dele. Ao responder, foi levado. Nunca mais conseguiu voltar à terra dele”, diz Toá. Embora não exista um ato formal de criação, o Reformatório surgiu em 1969, mesmo ano de criação da Grin, a Guarda Rural Indígena, estabelecida no âmbito da Funai e treinada pelos militares para policiar e manter a “ordem” em áreas florestais.
Formada por indígenas recrutados em aldeias e “aculturados”, o principal objetivo da Grin, conforme a Portaria 231/69, era o de “impedir que os silvícolas abandonem as suas áreas, com o objetivo de praticar assaltos e pilhagens nas povoações e propriedades rurais próximas dos aldeamentos”.
Na prática, a “ordem” era mantida por meio de abusos, castigos violentos e prisões arbitrárias. Já o “Reformatório” mantinha, em condições degradantes, sob trabalho forçado, torturas e privação de comida, índios apenados sem processo legal. Em 1972, o Reformatório Krenak foi transferido para a Fazenda Guarani, em Carmésia, onde Toá finalmente encontrou o avô.
Solitária da Fazenda Guarani, em Carmésia, Minas Gerais. (Foto: Clapa)
“Quando visitei meu avô pela primeira vez, ele estava solto, mas não podia sair (da propriedade) sem permissão das autoridades, do chefe da Funai. Se quisesse ir pra Carmésia, precisava pedir autorização”, conta Toá. Segundo ela, o avô ficou muitos anos nessa “liberdade limitada”, e não voltou mais ao território indígena Pankararu em Pernambuco. “Morreu entre os krenak, com quem formou nova família”, lembra.
Toá seguiu pelo caminho do avô. “Eu mesma, depois dessa vinda pra cá, nos juntamos com os Pataxó, formamos família. Foi a união de povos nossa única alternativa”, lembra. Os Pankararu vivem hoje em duas áreas no médio Jequitinhonha: na Aldeia Apukaré, em Coronel Murta, e na Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, em Araçuaí, onde dez famílias dividem 60 hectares, ainda em processo de demarcação e ampliação, junto com os Pataxós “mineiros”.
“Se o Marco Temporal se estabelecer, eu acredito que é o nosso fim. É a concretização de um crime que eles estão fazendo há muito tempo”.
Toá Kãnynã Pankararu
“Nossa cultura e forma de viver foi totalmente agredida. Meu avô tinha os cantos, a dança, sua tradição. De repente, foram obrigados a não fazer mais isso”, indigna-se Toá. “Da minha aldeia, a gente ouvia a cachoeira. Ela foi soterrada, submersa. Tínhamos um espaço sagrado que eram as grutas, as rochas, que os pajés dizem ser um lugar de se conectar com outros mundos. Isso acabou também. Então essa nossa memória foi perdida”.
Marco Temporal: contextos culturais e biológicos
Depois de todas essas histórias de luta, expulsão, dispersão e apagamento do patrimônio cultural dos povos, sejam antigas, recentes ou atuais, Minas Gerais possui hoje apenas nove Terras Indígenas regularizadas, e outros 19 territórios sem “providência”. O Marco Temporal, se vitorioso, vai deserdar esses povos definitivamente do direito à terra.
“O que é o indígena para nós? As pessoas não se permitem conhecer os povos indígenas. E nada melhor para quebrar esse paradigma do que o encontro”, nos diz a professora Ludimila Rodrigues, geógrafa do Grupo de Pesquisa Terra Água e Sociedade, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pesquisadora associada do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefs).
“Ele é um patrimônio. É muito valoroso você ter a oportunidade de possuir povos originários que ainda mantêm toda essa história, essa carga de valores, de relações humanas e de interação com o meio, relações que são totalmente viáveis. Relações que são um caminho para a sustentabilidade”, diz.
Seja o massacre do povo Xacriabá ainda nos tempos dos bandeirantes, seja nos desastres recentes da mineração em Minas Gerais, que deslocaram populações indígenas que viviam à beira dos rios mortos, é sempre o “desenvolvimento” o que justifica a retirada e a dizimação dos povos de seus territórios.
No século 20, várias etnias do corredor mineiro-baiano, a estrada da diáspora, desapareceram sob o rolo compressor do “desenvolvimento”. O Marco Temporal, nos diz a pesquisadora, nega a ancestralidade e a relação dos povos com o território, pois permite que outros interesses, sob a égide do desenvolvimento, se apoderem dele, destruindo contextos culturais e biológicos.
“É isso que a gente quer? É hora da gente se posicionar”, diz Ludimila. Confira:
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Esse foi o primeiro conteúdo da “Série Lei.A | Marco Temporal”. Se você chegou até aqui e se sentiu responsável por também agir, nós separamos algumas sugestões.
Supremo Tribunal Federal – Como dito, o Marco Temporal está sendo julgado pelo STF. Então, você pode ficar atento à movimentação. O Tribunal oferece informativos sobre suas pautas. O serviço é disponibilizado pela Coordenadoria de Multimeios do Tribunal. Para se cadastrar e receber diariamente as notícias publicadas, acesse o endereço http://j.mp/pushSTJ e digite seu e-mail. Ao receber o e-mail de confirmação, clique no link e aceite o cadastro. A assinatura é ativada imediatamente.
Câmara dos Deputados – Já na Câmara dos Deputados, O Projeto de Lei Complementar 490/2007, que também trata da demarcação de TIs, está pronto para votação. Você também pode monitorá-lo. Basta se cadastrar para receber as notificações de discussões e votações na Casa. Clique aqui para acessar o site da Câmara e fazer seu cadastro.
Conheça quem discute o tema com profundidade – Grupos já consolidados como a Articulação dos Povos indígenas do Brasil (Apib), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Centro de Estudos Ameríndios (CEstA), Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Instituto Socioambiental, KANINDÉ – Associação de Defesa Etnoambiental, Operação Amazônia Nativa (OPAN) oferecem informações apuradas com responsabilidade sobre o tema.
Fortaleça os projetos que buscam mudança – Se você sentiu afinidade com os temas e com as pessoas entrevistadas para esta série, busque saber mais sobre os projetos que elas fazem parte, acompanhe nas redes sociais, divulgue na sua rede de contatos. Existem diversos grupos de comunicação popular que oferecem perspectivas de quem vive na pele os conflitos relacionados aos povos indígenas. O Mídia Índia, o Coletivo Tibira, o Vozes da Floresta e o Coletivo Visibilidade Indígena são alguns exemplos para quem quer começar a conhecer.
Leia autores e autoras indígenas – Representantes de povos originários tem muito a dizer sobre este tema e muitos outros. Com as mais diversas abordagens, autores como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Eliane Potiguar, Carlos Tiago Hakiy e Graça Graúna, Olívio Jekup e Eliane Boroponepa nos oferecem uma tremenda contribuição literária e histórica.
Aposte na comunicação ambiental – Nós, do Lei.A, produzimos e lançamos um guia colaborativo, em formato de e-book, chamado “Guia Comunicação Ambiental e Mobilização Popular”. O material é pensado para as pessoas que querem agir por alguma causa socioambiental, mas não sabem por onde começar.
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