Cidade mineira é uma das mais importantes para se entender o processo de ocupação do interior do Brasil e o impacto disso no meio ambiente, seja ele natural ou cultural

Foto: Olímpio M. Gonzaga. Acervo: Arquivo Público de Paracatu
Nós, do Observatório Lei.A, produzimos e estamos lançando agora uma série com conteúdos especiais sobre a cidade de Paracatu, um dos mais importantes patrimônios históricos e artísticos nacionais e que vive o dilema diário de lutar contra retrocessos e na obtenção de avanços em relação ao seu meio ambiente natural e cultural.
Intitulada “Princesa do Sertão” devido à descoberta das últimas minas de ouro no Brasil Colônia, Paracatu guarda diversas histórias e bens (materiais e imateriais) que refletem a ocupação do Sertão do Brasil Central, a partir do Rio São Francisco.
Sem detrimento a essa grandiosa importância de Paracatu para o processo de ocupação do interior do Brasil, entre os séculos XVII e XIX, nessa série, também fomos buscar outras camadas de história do município e de toda a sua região, originariamente ocupada por povos indígenas.
Nós, do LEI.A, entrevistamos e conversamos com diversos pesquisadores, historiadores, moradores e guardiões da memória para entender como a história e a identidade de Paracatu estão representadas nos seus Patrimônios Culturais; como eles estão sendo salvaguardados e quais as ameaças que tanto eles quanto os patrimônios e recursos naturais sofrem.
Nesse primeiro episódio da série especial “O patrimônio cultural de Paracatu: o sertão tem história”, trazemos um pouco sobre os primórdios da ocupação desse território.
#conheça
Com uma população estimada para 2021 de 94.539 habitantes, Paracatu é o 3º maior município do estado em área com 8.231,029 km² (IBGE, 2020) e suas principais atividades econômicas são a mineração e a agropecuária.
A cidade está localizada na Bacia Hidrográfica do Rio Paracatu, um dos principais afluentes à margem esquerda do Rio São Francisco, e sofre com a escassez hídrica em seu território e com as consequências socioambientais da atividade minerária e da agricultura irrigada. Falaremos sobre essas questões nos próximos episódios da série especial.

Terra onde se destaca a culinária mineira, especialmente as quitandas com iguarias únicas como o “bolo de domingo”, o “mané pelado” e um modo tradicional de fazer o pão de queijo, além de personagens ilustres como Afonso Arinos de Melo Franco, jurista e escritor de obras que contam histórias do interior do país como Pelo sertão e O contratador de diamantes, Paracatu é um município situado na região Noroeste do estado de Minas Gerais, cortado pela BR-040, principal via de acesso rodoviário entre Brasília e o Rio de Janeiro. Se antes era caminho para os tropeiros, hoje continua sendo também importante ponto de passagem ou entreposto de quem vai da região sudeste para o Planalto Central. Está distante 482 km de Belo Horizonte e 220 km de Brasília.
Fonte: Google Earth

As influências africanas, indígenas, européias e brasileiras constituem o riquíssimo e diverso acervo cultural paracatuense, a maioria protegida pelos instrumentos de inventário, registro e tombamento. Igrejas, casarios, ruas e becos em pedra, folias, violas e culinária são bens culturais próprios da única cidade popularmente chamada de “histórica” do Noroeste mineiro.
Em 2012, Paracatu teve seu centro histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o que enalteceu a sua importância para o estado e para o país. Mas como alertamos, se vamos falar sobre a influência desse município tanto para Minas Gerais quanto para o interior de todo o Brasil, precisamos começar pelo verdadeiro início disso tudo.

Os primeiros habitantes
“A história é contada pelos vencedores” escreveu George Orwell em um artigo publicado em 1994 na revista inglesa Tribune. Assim, é normal que a historiografia brasileira desconsidere as pessoas e povos indígenas no momento de registrar a formação do Brasil. As histórias contadas relegam os grupos indígenas apenas ao momento da invasão de colonizadores, não sendo, assim, capazes de dar visibilidade aos primeiros habitantes.
Apesar da historiografia brasileira, os Patrimônios Culturais são capazes de reproduzir a memória e identidade dos primeiros habitantes e permitem “vivenciar” a história sendo contada pelos grupos indígenas.
Assim como a grande maioria dos municípios brasileiros, a história de Paracatu é contada a partir da chegada e estabelecimento de colonizadores em seus limites. Porém, a sua região já era habitada pelos índios Temiminós, Amoipiras e Tupinaês, todos de origem tupi.


Para quem acha que a região de Paracatu somente se tornou conhecida após a descoberta do ouro pelos bandeirantes, está completamente enganado. O fato de se situar no interior do país, mesmo com pouca ocupação, não lhe retirava a importância de ser rota para pessoas e transporte de bens de consumo. “Paracatu era um cruzamento… eu já li num jornal que era ‘prisioneira das distâncias’, mas não era. Aqui tinham muitas rotas. Não era ‘prisioneira das distâncias’. Nós temos registros de bandeiras aqui do século XVI’”, afirma a educadora patrimonial e historiadora Terezinha de Jesus Santana Guimarães.
Assim, antes mesmo da formação do município de Paracatu, o território indígena já era conhecido desde o final do século XVI pelos bandeirantes que vinham da Vila de São Paulo, nas bandeiras de Domingos Luiz Grou (1586-1587), Antônio Macedo (1590), Domingos Rodrigues (1596), Domingo Fernandes (1599) e Nicolau Barreto (1602-1604) que buscavam materiais preciosos no Brasil Central.
Fonte: JONH MANUEL MONTEIRO – Adaptado de Negros da terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
A partir do descobrimento de minas de ouro em Minas Gerais e em Goiás, a região de Paracatu tornou-se o caminho de ligação. Os primeiros habitantes eram caçados e escravizados pelos bandeirantes e tropeiros que transportavam o ouro de cidades goianas como Vila Boa de Goyaz (atual Goiás), Luziânia, Pirenópolis, Corumbá, Jaraguá e Pilar de Goiás, para o litoral do Brasil.
Caminhos de Minas – Picada de Goiás – José Joaquim da Rocha. Mapa da Capitania de Minas Gerais com a divisão de suas comarcas. 1778. Arquivo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Representação da Picada de Goiás – Disponível em Rezende, Ana Maria Nogueira. “Fluxos globais no século XVIII: a produção do modus vivendi e operandi no entorno da Estrada Real Picada de Goiás.” (2017).
Assim, pouco a pouco, no território indígena que hoje se encontra Paracatu, foram erguidas casas para apoiar o transporte de ouro e gado entre as Minas Gerais e o Brasil Central ainda no século XVII. Dada a relevância da região, a Coroa Portuguesa nomeou Tomás do lago Medeiros com a patente de Coronel de Paracatu e deixou sob a sua responsabilidade a organização das divisões de terra para iniciar o povoamento na região, antes mesmo da descoberta de minas de ouro em Paracatu.
Neste período, Paracatu é ocupada por fazendeiros que criavam gados para vendê-los aos municípios de Goiás e do Brasil Central. O estabelecimento das fazendas ali levou ao acirramento da perseguição aos índios Temiminós, Amoipiras e Tupinaês. Eles eram capturados e levados para fazendas em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente.
Para Alexandre de Oliveira Gama, historiador e professor do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM), a referência aos indígenas na historiografia é “eurocêntrica, etnocêntrica, do gentio, do selvagem, que o sertão vai ser domado a partir do momento em que o gentio ou selvagem for retirado ou controlado. O discurso foi sempre esse”. A expulsão e extermínio dos povos indígenas era visto como algo positivo. “Quando Afonso Arinos escreve o livro O estadista da república, ele também fala a mesma coisa: o índio bravio, o gentio foi sendo eliminado e o sertão foi ganhando”, complementa.

A descoberta do ouro e os primeiros “apagamentos de histórias”

Com o anúncio da descoberta do ouro em Paracatu, pelas bandeiras de José Rodrigues Froes e Felisberto Caldeira Brant, em 1744, o governador Gomes Freire de Andrade decidiu criar, ainda no século XVIII, o Arraial de São Luiz e Sant’ Anna das Minas de Paracatu. A criação do Arraial garantiria o controle da extração do ouro que, durante algum tempo, foi abundante e era retirado dos depósitos aluviais locais.
Com isso, houve uma intensificação da chegada de pessoas livres e escravizadas a Paracatu, os seus primeiros habitantes foram sendo expulsos, massacrados e apagados da história do município, deslocando-se cada vez mais para dentro do Brasil Central. Os grupos indígenas da região escondiam-se nas serras e eram constantemente caçados pelos colonizadores. E é neste momento da história, que os livros “dos vencedores” passam a contar a história de Paracatu. A chegada de Felisberto Caldeira Brant e José Rodrigues Froes e a descoberta de ouro inauguram Paracatu na historiografia brasileira e os primeiros habitantes não possuem mais visibilidade nessa história.
Inicia-se, assim, a ocupação pelos brasileiros e portugueses e a escravização de povos vindos da África para trabalhar nas minas de ouro.

A Vila de Paracatu do Príncipe
O arraial nascido como São Luiz e Sant’Anna das Minas de Paracatu foi elevado à Vila de Paracatu do Príncipe, em 1798. Por Decreto Régio de 17 de maio de 1821, foi criado em Paracatu o curso de Retórica e Filosofia, o primeiro do interior do país, garantindo a tradição de cultura e intelectualidade da sociedade paracatuense. A Vila foi conhecida como a “Atenas Mineira”.
Nas primeiras décadas do século XIX ocorreu o declínio da mineração na região, estagnando o chamado “desenvolvimento econômico” até a construção de Brasília, na década de 1950, quando a ocupação da região central do país foi intensificada.
No entanto, nesse século de declínio da mineração, Paracatu foi mantida especialmente pelos habitantes da zona rural, que mantinham o sustento pela prática da agricultura familiar.
Se a cobiça no período colonial causou o desaparecimento de um povo, o atrativo mineral propiciou a formação administrativa de Paracatu, típica do estado de Minas Gerais, e a construção de uma cultura financiada pela riqueza e pelo poder, mas sem que a participação dos escravizados fosse registrada.



Os quilombos de Paracatu

As pessoas escravizadas que conseguiram a liberdade no Brasil Colônia formavam comunidades com organizações próprias, algumas das vezes afastadas do centro urbano das vilas, como forma de resistência à opressão sofrida, seja ela física ou cultural.
Em Paracatu, 5 comunidades são reconhecidas como remanescentes de quilombos e certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), órgão vinculado ao Ministério do Turismo, que tem como responsabilidade regularizar a titulação das comunidades quilombolas no Brasil. São elas: Família dos Amaros, Machadinho, São Domingos, Pontal e Cercado. O Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes) possui informações cadastrais e históricas das comunidades quilombolas de Paracatu que abaixo reproduzimos:
Família dos Amaros
A comunidade quilombola Família dos Amaros surgiu com a compra da Fazenda Pituba no final do século XVIII por um escravo forro chamado Amaro Pereira das Mercês. Ali, Amaro e outros pretos forros deram início à uma comunidade autônoma. Em 2004, a FCP reconheceu a comunidade de Amaros como remanescente dos quilombos. Atualmente, a comunidade de Amaros encontra-se na fase de Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), onde o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) faz o levantamento fundiário e o cadastramento das famílias da comunidade quilombola, sendo esta a última etapa para a titulação do território quilombola.
Machadinho
A comunidade de Machadinho tem a sua ocupação iniciada com Francisco Morais Lima e sua família que chegaram com as bandeiras de Felisberto Caldeira Brant e José Rodrigues Froes no vale do rio Paracatu. Os moradores de Machadinho descendem das famílias escravas que ocuparam o local há mais de 200 anos (CEDEFES). Assim como a comunidade quilombola Família dos Amaros, a comunidade de Machadinho foi certificada pela FCP em 2004 como remanescente de quilombo e aguarda a conclusão do RTID para a titulação da terra.
São Domingos
A comunidade de São Domingos é bastante antiga, encontrando-se no local há mais de duzentos e cinquenta anos, quando Paracatu formou-se pela expansão da fronteira aurífera. Três grupos familiares de pessoas escravizadas formaram a comunidade: os Ferreira, os Lopes e os Mendanha (CEDEFES). Como as outras duas comunidades de Paracatu, São Domingos foi reconhecida pela FCP em 2004 como remanescente de quilombo e aguarda a conclusão do RTID.
Pontal
A comunidade do Pontal formou-se no século XIX por um casal que recebeu o terreno de doação pelo dono da fazenda onde trabalhavam como escravos. Está localizada a mais de 50 km da sede urbana. Em 2006, a FCP reconheceu Pontal como remanescente de quilombo e, atualmente, a comunidade aguarda os inícios do RTID para titulação das terras.
Cercado
Por fim, a comunidade de Cercado tem a sua origem na família Ferreira há, aproximadamente, 100 anos. Assim como Pontal, a FCP reconheceu Cercado como remanescente de quilombo e, atualmente, a comunidade aguarda os inícios do RTID para titulação das terras.

Abaixo, um vídeo com fotos da comunidade quilombola de São Domingos:
Em Paracatu, os ex-escravizados fizeram parte da formação do núcleo urbano e influenciaram o desenvolvimento cultural do município, instalando-se em locais próximos ao núcleo de ocupação dos brancos colonizadores.


A comunidade quilombola de São Domingos, por exemplo, dista 3 km do centro da cidade, foi o local onde ocorreram as primeiras ocupações de Paracatu e hoje estão presentes manifestações culturais como a caretagem, ou caretada, e a produção de quitandas.
Registros indicam que, em 1747, 85% da população de Paracatu era composta por pessoas pretas, conforme relatado pelo professor Alexandre Gama. Ele narra também que o antropólogo Luiz Mott encontrou registros mostrando que já em 1744, quando foi anunciada a existência de ouro na região, uma mulher escravizada, de nome Josefa Maria, que havia comprado sua alforria, mantinha uma casa de culto de religião de matriz africana, na principal rua de Paracatu, onde as cerimônias eram realizadas na língua da região do golfo do Benin, na África Central. Embora posteriormente Josefa Maria tenha sido condenada pela Inquisição, essa casa de culto de matriz africana foi tolerada por algum tempo.
Outro episódio que marca a presença de pessoas escravizadas próximas à sede urbana e em contato com ela, como nos relatou o professor, é de que no livro Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goyaz, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve em Paracatu em 1819, narra que “depois de descer o morro da cruz das almas, percorri até Monjolos, uma região montanhosa, coberta de árvores enfezadas, dispersas no meio das gramíneas. Os terrenos outrora cultivados estão cobertos de capim gordura. Monjolos, lugar onde me apeei, é uma espécie de pequeno povoado, de algumas casinholas esparsas, num valão, às margens de um córrego, habitados por negros, criolos e livres”.
No caso, Monjolos é a região hoje conhecida como Morro do Ouro, local em que uma grande mineradora de ouro explora atividade minerária, e em parte ocupada pela comunidade quilombola de São Domingos.

Adaptação de mapa do Sistema de Informações Geográficas da Mineração – SIGMINE. À esquerda, em verde, o território quilombola Machadinho; ao centro, o território quilombola São Domingos; e à direita, o território quilombola Amaros. A linha vermelha representa a BR-040. Abaixo, a sede urbana de Paracatu, e acima, o complexo minerário da Kinross Brazil Mineração S.A.

A contribuição dos povos indígenas, a chegada dos brancos colonizadores, as formas de ocupação e exploração dos recursos naturais e a escravização de pessoas se refletem na cultura de Paracatu, no patrimônio perdido, no patrimônio edificado e no patrimônio vivo.
Conhecer a história de Paracatu é de suma importância para entender e valorizar o seu patrimônio cultural.

O que vem por aí
No próximo episódio da série especial “Patrimônio cultural de Paracatu: o sertão tem história”, nós, do Lei.A, vamos trazer um conteúdo sobre quais são as leis que protegem o patrimônio cultural de Paracatu, quais são os bens protegidos, como funciona a política de proteção ao patrimônio e como a sociedade civil participa nesse contexto.
