LEI.A Análise | Por que a Assembleia Legislativa MG segue permitindo leis “Frankenstein”?

Manobra é vedada por lei, pelo próprio Regimento Interno da ALMG e contraria decisão do STF, mas parlamento mineiro não coíbe a prática

Especialista ouvida por Lei.A afirma que leis “Frankenstein” são antidemocráticas, mitigam a transparência e inviabilizam o controle da sociedade civil    


Em fevereiro de 2022, o PL 1837/2020, sobre a proibição de apreensões de veículos durante a pandemia, ganhou uma emenda, de autoria do deputado Thiago Cotta (PDT), que repercutiu nacionalmente nas mídias convencionais e sociais. 

Incluiu-se no texto um artigo sem nenhuma relação com o tema em apreciação, segundo a qual alterava-se a área do Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda (Monae Serra da Moeda). 

Foi a 3ª tentativa pouco “transparente”, apenas na atual Legislatura, de se alterar uma área pública, dentro de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, onde há atividade minerária questionada judicialmente – no caso, de propriedade da mineradora Gerdau SA.

A manobra, conhecida como “Lei Frankenstein”, isto é, enxertar um pedaço de outra norma numa proposição legislativa sem relação com o tema, está longe de ser inédita. Nós, do Lei.A Observatório, já escrevemos muito sobre elas (clique aqui). 

“Há limites de atuação dos parlamentares para propor leis, e também para realizar alterações em seus textos. Os limites estão previstos na Constituição Federal, nas Constituições estaduais e nos regimentos internos das Casas Legislativas, de forma explícita e implícita”, disse ao Lei.A a advogada ambientalista Letícia Camarano Minas, que já atuou com processos legislativos na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

Segundo ela, é inerente ao processo legislativo e ao trabalho parlamentar contribuir ou alterar projetos de lei, mas o texto e suas emendas devem ter uma temática específica, ou, nas palavras de Letícia, “uma integridade”. 

Com o objetivo de dispor sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis e manter a integridade do ordenamento jurídico brasileiro, foi editada a Lei Complementar nº 95/1998. Segundo o art. 7º, incisos I e II, cada lei tratará de um único objeto e a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.

Serra da Piedade: quando a Lei Frankenstein “colou”

No ano de 2006, o PL 2643/2005, sobre a doação de um terreno público para o Centro Federal de Educação Tecnológica de Rio Pomba (Cefet-RP), no município de Lima Duarte, serviu de hospedeiro para os seguintes artigos:

A Lei 15.178/2004, em questão, é a do tombamento da Serra da Piedade, maior centro de peregrinação religiosa do estado, onde fica, a 1.700 metros de altitude, o santuário de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas Gerais.     

A emenda Frankenstein passou implantada na cessão de um imóvel, tornando-se a Lei 16.133/2006. Apesar das duas ações civis públicas, movidas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e pelo Federal (MPF), e de todos os instrumentos de proteção (tombamentos municipal, estadual e federal, além de estar em Unidade de Conservação), a Brumafer Mineração Ltda obteve as licenças para minerar no novo perímetro.   

Hoje, quase 20 anos depois, tramita na ALMG, desde 2019, o PL 513/2019, que redefine os limites de conservação da Serra da Piedade – PL que mal saiu do lugar (clique aqui e conheça). Enquanto isso, a situação de conservação do Conjunto Paisagístico da Serra da Piedade, Patrimônio Cultural Brasileiro, é cada vez mais precária.


Arêdes: sítios arqueológicos da escravidão ignorados

Em 2017, ainda sob o impacto da ruptura da barragem de Fundão, da Samarco S.A, em Mariana (MG), a ALMG votava o PL 3677/2016, que destinava 100% da TRFM (taxa minerária) aos órgãos ambientais do estado. 

O deputado João Magalhães (MDB) incluiu, durante a passagem do texto pela Comissão de Administração Pública, o artigo 84, que repartia a área da Estação Ecológica de Arêdes, Unidade de Conservação de Proteção Integral, em Itabirito, tirando a proteção da parte do território onde havia interesses minerários.

ESPECIAL: Estação Ecológica repleta de nascentes no coração de Minas Gerais vive calvário há nove anos – Lei.A (leia.org.br)


Vários deputados à época alegaram terem sido enganados, aprovando o texto sem a ciência da inclusão do artigo 84. Inclusive foi proposto por estes parlamentares, em seguida, o PL 4940/2018, que revoga as disposições contidas no artigo 84 enxertado, mas o projeto jamais saiu do lugar. 

O Ministério Público conseguiu, liminarmente, quase dois anos depois, sustar o efeitos do artigo 84, que permitiu atividades minerárias no local, até que fosse julgado o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada. 

Antes disso, as explosões e os caminhões da Minar Mineração mineravam o terreno, mesmo ciente dos riscos ao patrimônio arqueológico da Fazenda Arêdes, onde ruínas do tempo da escravidão (capela, senzala e curral de pedra) deveriam estar protegidos pelos instrumentos já vigentes – mas não estão.     


STF: emenda Frankenstein é ilegal e antidemocrático 

“Leis Frankenstein ou jabutis fogem do tema do projeto original de forma silenciosa, e sem alardear sobre determinada matéria que se deseja pautar”, diz a advogada Letícia Camarano Minas. 

Todavia, ela alerta que qualquer desrespeito às normas que tratam do processo de criação de leis implicará em desconformidade com a Constituição, possibilitando que o Poder Judiciário realize o controle para retirar a validade da lei.

Segundo a advogada, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5127, sobre a questão da pertinência temática de emendas em Medidas Provisórias (MPs), decidiu pela inconstitucionalidade das chamadas “emendas parlamentares Frankenstein”.

“A Suprema Corte entendeu que o chamado ‘contrabando legislativo’ – introdução de matéria estranha à medida provisória original – não é mera inobservância de formalidade, mas um procedimento antidemocrático, já que tira do debate público as normas que inovam e regulam a vida social”. Letícia Camarano Minas, advogada.


Para a advogada, a aprovação de leis com esse “embaralhamento” temático trazem consequências concretas para o cidadão ao mitigar a transparência legislativa e inviabilizar o controle social da atividade parlamentar. 

“Se a lei é ato inovador de conduta, direitos e/ou deveres sociais, é fundamental seu amplo debate, desde sua origem, como projeto, até sua aprovação, gerando qualidade no processo legislativo. Como viabilizar um debate social e técnico, se uma emenda é acoplada a um texto legal, que não traz e não faz nenhuma referência a ela?”, questiona a advogada. 


Com a palavra, a ALMG

O próprio Regimento Interno da ALMG traz uma série de artigos vedando a prática. Por exemplo, segundo o Artigo 173, § 6º – A proposição que versar sobre mais de uma matéria será encaminhada, preliminarmente, à Comissão de Constituição e Justiça para desmembramento em proposições específicas.

Já segundo o Artigo 189, § 3º – A emenda contendo matéria nova só será admitida, no 2º turno, por acordo de Lideranças e desde que pertinente à proposição. Nós, do Lei.A Observatório, procuramos a ALMG e questionamos: 

1) Por que, apesar de vedado por lei federal (95/1998), por acórdão do STF (ADI 5127) e pelo Regimento Interno da ALMG, as emendas “Frankenstein” (quando se inclui norma sem conexão com o assunto do PL original) seguem sendo propostas e aprovadas pela ALMG? 

2) Há algum dispositivo, deliberação da Mesa, portaria ou circular interna que regulamente ou vede tal prática? 

3) O que a ALMG pode fazer para limitar a tramitação e a aprovação dessas leis criadas a partir de manobras ilegítimas e ilegais? 

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