ESPECIAL | Rota Lei.A: uma viagem pela arte rupestre de Minas Gerais

Nova série de Lei.A discute o patrimônio, a diversidade e a proteção aos sítios arqueológicos de arte rupestre em Minas Gerais

Neste primeiro episódio, um mergulho pelo imaginário de grupos que deixaram seus saberes e vivências do território marcados no tempo

Já na primeira pergunta da apuração para a nova séries especial do Lei.A, sobre qual o sentido das pinturas em cavernas, a arqueóloga e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria Jacqueline Rodet, nos ensina que não são bem “cavernas”, tampouco são necessariamente “pinturas”. 

“São grafismos rupestres. E eles são encontrados nos abrigos e nas entradas de caverna. Raramente você tem notícia, no Brasil, de pintura em zonas afóticas, ou seja, zonas mais distantes da entrada”, explica a professora. 

Ainda assim, podemos chamar de arte, certo? “Vai além disso”, ela pontua. “Certamente representa o imaginário, marca o território que eu vivo, meu estar no mundo, naquela paisagem que vivemos e percorremos cotidianamente. Mais do que essa noção de arte que talvez a gente tenha no mundo atual”.

No primeiro episódio da série especial Rota Lei.A: uma viagem pela arte rupestre de Minas Gerais, nós, do Lei.A, te convidamos para uma investigação sobre o nosso fascinante passado, onde vestígio e imaginário são os caminhos para a memória da passagem desses grupos pelas mesmas paisagens que ocupamos e vivemos hoje. 


Como falaremos ao longo de toda a série, sítios arqueológicos, entre os quais se inserem as inscrições rupestres, são reconhecidos como parte integrante do Patrimônio Cultural Brasileiro pela Constituição de 1988 (Art. 216). Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), estão catalogados cerca de 24 mil sítios arqueológicos em todo o Brasil, sendo cerca de 5 mil em Minas Gerais.

Qual a extensão do patrimônio arqueológico com grafismos rupestres em Minas? Qual a situação de conservação desses bens? Por que é crucial preservá-los? E o que já perdemos para a irracionalidade destrutiva nos últimos anos?


A série especial Rota Lei.A foi atrás de todas essas questões, dos instrumentos de proteção à emoção de uma nova descoberta, sem esquecer das ameaças e da fragilidade dos sítios arqueológicos. Neste primeiro episódio, vamos falar sobre os conhecimentos que essas manifestações tão duradouras nos permitiram adquirir sobre a humanidade.

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O que é um sítio arqueológico?

De acordo com o Iphan, sítios arqueológicos são locais onde se encontram vestígios de ocupação humana. São exemplos cemitérios, sepulturas ou locais de estadia prolongada, como aldeamentos, estações, grutas, lapas e abrigos sob rocha, além das inscrições rupestres ou locais com sulcos de polimento, os sambaquis (falaremos mais deles adiante), cerâmicos e demais resquícios de atividade humana. 

Os sítios podem ser de diferentes tipos, como “sítios abrigados”, tais como cavernas, grutas e paredões, onde encontram-se vestígios de figuras rupestres; “sítios a céu aberto”, que muitas vezes demandam intervenções no solo para serem identificados; ou “sítios históricos”, ou seja, construções que tenham relevância histórica e cultural, como casarões, igrejas, aldeias, fazendas e quilombos, entre vários outros tipos. 

Exemplos de diferentes de sítios arqueológicos no Brasil:  

Como um sítio arqueológico é catalogado?

Segundo o Art. 20, da Constituição Federal, sítios arqueológicos são bens da União. Ou seja, embora possam estar situados em propriedades privadas, eles se constituem como patrimônio público da União (pessoa jurídica que representa o Governo Federal). Logo, a proteção dos sítios, a pesquisa e a exploração, assim como o dano causado, são regidos por normas federais.

Se cabe ao Estado a proteção dos sítios arqueológicos, incluídas as inscrições rupestres, o principal órgão de proteção dos sítios arqueológicos é o Iphan, que está administrativamente setorizado para atender os aspectos básicos da especialidade, sendo o primeiro deles a identificação e a documentação dos sítios.

Conheça as orientações sobre o cadastro clicando aqui

Para ser catalogado, é preciso analisar evidências que indiquem vestígios de atividade humana naquele espaço. As funções de identificar, registrar, prospectar e escavar sítios arqueológicos, bem como proceder ao seu levantamento, são privativas do arqueólogo, cuja profissão está regulamentada pela Lei nº 13.653/2018.

Cabe aos profissionais da arqueologia preencher a ficha digital no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA), que faz parte do sistema de gerenciamento do patrimônio arqueológico em todo o Brasil. Protocolado na superintendência do Iphan no estado e, uma vez no sistema, as informações ficam acessíveis para a consulta.


O que são os grafismos rupestres? De que época são?

“O grafismo rupestre é um registro, um vestígio arqueológico da cultura material dos grupos passados”, define a professora Rodet. E por que grafismos, e não pinturas? Segundo ela, há também os “picoteados” — marcas e furos formando figuras e contornos, que podem ou não ser pintados. 

De acordo com Rodet, há grafismos rupestres em todo o território brasileiro. Embora haja registros de até 12 mil anos em Minas Gerais, via de regra, os sítios com grafismos rupestres no estado datam por volta de 3 mil a 4 mil anos — período conhecido como Holoceno Recente, era da domesticação de plantas, da cerâmica, entre outros artefatos, que vai desde 4 mil anos até o contato com o colonizador.

Por que a escolha dos abrigos ou das grutas para pintar? “As pinturas estão sempre num lugar muito específico, onde há outros vestígios juntos. Não dá para ficar só na pintura, é preciso pensar no conjunto de vestígios”. Nesse primeiro vídeo com a arqueóloga Maria Jacqueline Rodet, você pode saber mais sobre que vestígios são esses e a riqueza de suas significações.

Trouxestes a chave? A linguagem dos grafismos rupestres 

A gruta de Chauvet, na França, uma das mais conhecidas do mundo, serve de exemplo do cuidado necessário ao se buscar significados nos elementos contidos nas pinturas e grafismos rupestres. Lá foram catalogadas 435 pinturas de animais, de 13 diferentes espécies, sobretudo cavalos, bovídeos e veados. 

Extremamente realistas, essas pinturas foram interpretadas por certa associação com a fortuna na caça, mas estudos posteriores demonstraram que os animais retratados nem sempre eram os utilizados como alimento naquele sítio. “É muito complicado definir o que levou aquele grupo a pintar aquelas figuras, mas certamente elas foram importantes no cotidiano, por estarem presentes na vida ou no imaginário deles”, diz Rodet. 

Afinal, o que os grafismos nos contam? Rodet diz que o tema é delicado. “Porque a chave de leitura dessas pinturas, desses temas, desses locais na paisagem, a gente não tem mais. Nós não sabemos o que aquilo significa. Mas sabemos que eles escolheram tais cores para serem reproduzidas ali, certos animais, certas cenas cotidianas, e isso nos diz que eles conheciam bem a paisagem deles, pois aquilo eram marcadores da paisagem”, conta. 

Também nos permitem saber, por exemplo, o conhecimento desses povos acerca da base geológica, pois eles foram buscar na hematita e na goethita certos elementos minerais que vão ser transformados em tinta. 

Se na Europa são comuns as pinturas de cavalos e de mastodontes, com grande riqueza realística, no Brasil avultam os desenhos geométricos, os peixes, as cenas da vida, com bastante representação humana, ao contrário do velho continente. 

A variedade de registros e a maior ou menor complexidade dos grafismos, todavia, nada dizem sobre capacidades ou “estágios evolutivos” dos grupos. “São escolhas culturais. Somos todos homo sapiens sapiens e temos as mesmas capacidades”, diz Rodet. 

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A história do cuidado com a memória

Marco moderno de preservação do patrimônio arqueológico, oriundo do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (1931), a Carta de Atenas externou preocupações e recomendou às autoridades governamentais da época diretrizes e responsabilidades de proteção aos monumentos históricos. 

No Brasil, a década de 1930 também foi um momento importante de inquietação com a proteção do patrimônio cultural nacional. Em 1934, foi incluída no artigo 148 da Constituição, publicada à época, a incumbência da União, Estados e Municípios protegerem os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País.

No ano de 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Iphan, para promover o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional. No mesmo ano, foi publicado o Decreto-lei nº 25/1937, conhecido como a Lei do Tombamento, que disciplinou a proteção do patrimônio cultural brasileiro, entre ele os sítios arqueológicos, através do instituto do tombamento.


A Lei da Arqueologia

A Conferência Geral das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) reunida em 1956, divulgou a Carta de Nova Delhi, que iria influenciar decisivamente a criação de normas sobre investigações e descoberta de objetos de caráter arqueológico. 

A Carta recomendava aos Estados Membros da ONU a adoção de medidas de proteção ao patrimônio arqueológico como, por exemplo, submeter explorações e pesquisas a prévia autorização, obrigar a declaração da descoberta às autoridades, aplicar sanções aos infratores, estabelecer critérios de proteção legal, criar órgãos de proteção às pesquisas e de controle sobre restaurações e promover o acesso público aos sítios, entre outros.

As diretrizes da Carta de Nova Delhi deram a base teórica para a Lei da Arqueologia Brasileira. Nas décadas de 1940 e 1950, chamou a atenção de cientistas e intelectuais a exploração econômica de jazidas de fósseis (tecnicamente conhecidas como paleoetnográficas), especialmente de sambaquis, no litoral brasileiro.

A destruição dos sambaquis gerou discussões sobre a criação de uma legislação capaz de proteger os vestígios deixados por civilizações de períodos históricos e pré-históricos, bem como de regulamentar o trabalho de escavações arqueológicas. 

Verificou-se, na época, que o tombamento não era o instrumento de proteção mais adequado para sítios arqueológicos, uma vez que escavações entravam em conflito com as intervenções permitidas em bens tombados. Em 1961, foi aprovada a Lei Federal nº 3.924, chamada Lei da Arqueologia, que dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos, como os grafismos rupestres. 

A Lei ainda estabeleceu que qualquer ato que cause destruição ou mutilação dos bens arqueológicos é considerado crime contra o Patrimônio Nacional. Como funciona a rede de proteção legal na prática, o que diz a legislação brasileira e quais as penalidades sujeitam o infrator, veremos ao longo da série especial Rota Lei.A. Antes, é preciso responder por que proteger e de quem proteger.



Por que proteger? De quem proteger?

A fragilidade dos grafismos rupestres é, antes de tudo, de ordem material. Por um lado, há o desplacamento natural das rochas, evento comum e que ocorre ao longo de milênios. Na maioria das vezes, os próprios fragmentos caídos, novamente soterrados pela ação do tempo, vão servir como datação arqueológica do sítio. 

Mas há a fragilização provocada pela ação humana no meio ambiente, que altera o microclima dos abrigos. “O abrigo, como uma caverna, é um local equilibrado, ele tem a média anual do frio e do calor que fazem do lado de fora. Quando você retira a proteção, que são as árvores, o sol entra. Você passa a ter muito calor de dia e frio à noite, e essa diferença de temperatura faz estourar as pinturas e surgir fungos”, explica a arqueóloga Maria Jacqueline Rodet.

Um exemplo é o sítio da Lapa do Sol, no município de Jequitaí, no Norte de Minas Gerais. A Lapa do Sol é uma gruta calcária suspensa, próxima à margem do Rio São Francisco, totalmente pintada, além de conter picoteados. Segundo Maria Jacqueline Rodet, o sítio tem sido destruído rapidamente, tanto pela supressão da vegetação quanto pela ação de populações locais. “A última vez que estive lá, caçadores tinham feito uma fogueira dentro da gruta, destruindo parte dos grafismos”, conta.

Lapa do Sol, em Jequitaí (Fonte: Laboratório de Tecnologia Lítica (LATEL-MHNJB-UFMG)


Lapa do Sol, em Jequitaí (Fonte: Laboratório de Tecnologia Lítica (LATEL-MHNJB-UFMG)


Contudo, seja no Vale do Peruaçu, no Norte de Minas, com o início do processo de desmatamento, de produção de carvão e de pastagens, nas décadas de 1960 e 1970, ou nos dias atuais na Serra da Moeda, com a expansão da exploração minerária, a destruição dos sítios arqueológicos, via de regra, está associada às pressões econômicas. 

Isso, pois a exploração do território muitas vezes causa tanto a remoção física dos sítios quanto a destruição das condições ambientais que permitem sua perenidade. São exemplos a atividade minerária e a indústria do cimento, o desmatamento e a produção de carvão, a exploração imobiliária e dos recursos hídricos, e mesmo o plantio – se este é menos danoso aos abrigos, atinge de forma mais relevante os sítios a céu aberto. 



Um exemplo? O caso Heineken, em Pedro Leopoldo (MG)

O imbróglio judicial envolvendo a construção da fábrica da cervejaria Heineken, em Pedro Leopoldo, Região Metropolitana de Belo Horizonte, é exemplar. O local escolhido para o empreendimento fica ao lado do sítio arqueológico da Lapa Vermelha IV, onde foi localizado o fóssil de Luzia, o mais antigo já encontrado na América do Sul.

O local está resguardado, na teoria, por diversos instrumentos de proteção, afinal, ele fica dentro da Área de Proteção (APA) Carste de Lagoa Santa, e também na zona de amortecimento do Monumento Natural Estadual Lapa Vermelha, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. O sítio também é cadastrado no Iphan como bem cultural de alta relevância científica, nacional e internacional.

O projeto prevê outorga para uma vazão de 360 mil litros por hora, o que pode pôr em risco o abastecimento humano, como a população de Confins, que depende da água subterrânea. A região está incluída no Plano Diretor da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas como área “prioritária de conservação” e, segundo a UTE Riacho da Mata, responsável pela cobertura da área, o risco de escassez é considerado “crítico”. 

Se não bastasse, o Carste, por definição, é um tipo geológico extremamente frágil, caracterizado pela corrosão das rochas calcárias, o que leva ao aparecimento de peculiaridades físicas como cavernas, grutas, rios subterrâneos, paredões rochosos expostos, entre outros. Arqueólogos sustentam que o empreendimento traz risco de causar danos irreversíveis aos sítios. 

Mesmo assim, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais (Semad), por meio da Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri, clique aqui e saiba mais), procedeu à autorização de Licença Prévia e de Instalação do empreendimento sem os devidos estudos hidrológicos, de impacto ambiental e no patrimônio cultural.

  • Para reler o ESPECIAL Caminhos do Licenciamento Ambiental, clique aqui.
  • Para conhecer o Licenciamento Ambiental da Heineken, clique aqui.

Órgãos como o Iphan e o Iepha-MG não foram consultados, tampouco foi requerida a manifestação do Instituto Estadual de Florestas (IEF), responsável pela Unidade de Conservação. Como o sítio arqueológico está na Área de Influência Direta (AID) do empreendimento, a Lei Estadual 11726/1994 exige Estudo de Impacto no Patrimônio Cultural (EPIC), também não apresentado. 

No dia 21 de setembro de 2021, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), embargou as obras na fábrica da Heineken, e em 27 de outubro de 2021, o Ministério Público de Minas Gerais recomendou à Semad a anulação das licenças Prévia e de Instalação concedidas à Heineken. A empresa diz ter interrompido o processo até que as questões estejam devidamente sanadas.

Para saber as razões do Ministério Público de Minas Gerais, clique aqui

Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas



Reação da Arqueologia Brasileira 

No dia 21 de outubro, arqueólogos e arqueólogas de todo o Brasil, espalhados por diversas universidades do mundo, enviaram uma carta aos jornais holandeses, sede mundial da Heineken, alertando para os riscos causados pelo empreendimento da empresa ao que foi chamado de “berço da Paleontologia e da Arqueologia brasileiras” (clique aqui e leia na íntegra).

O texto alude à proximidade do empreendimento a um dos sítios arqueológicos mais importantes do Brasil, onde foi encontrado o crânio de uma mulher, datado de aproximadamente 11 mil anos. O fóssil de Luzia, o mais antigo já localizado na América do Sul, já havia sido destruído no incêndio do Museu Nacional, em 2018. 

A retirada da quantidade de água prevista pelo empreendimento, segundo os arqueólogos, pode atingir diretamente o conjunto dos mais de cem sítios arqueológicos da região já catalogados e registrados no órgão responsável, além de colocar em risco o abastecimento de comunidades que dependem da mesma água — e sem a anuência delas. Por fim, os arqueólogos fazem o alerta: destruir patrimônio arqueológico no Brasil é crime.

#Aja

Você já pensou no que nós perdemos quando destruímos sítios arqueológicos? “Mesmo que a gente já tenha bastante estudo, isso ainda é nada perto do que a gente precisa fazer”, alerta a arqueóloga Maria Jacqueline Rodet (UFMG). Nós, do Lei.A, propusemos uma reflexão final à professora. Convidamos você a fazer também a sua. Confira!


No próximo episódio do Especial Rota Lei.A, um dos territórios mais ricos em vestígios históricos e arqueológicos de Minas Gerais é também um dos mais conflagrados em termos de disputa pela apropriação dos recursos naturais: a Serra da Moeda. 


Em Rota Lei.A | Serra da Moeda: descoberta em campo minado, nossa reportagem vai falar sobre os sentimentos contraditórios envolvidos na localização de sítios inéditos, com grafismos rupestres relativamente bem conservados, no coração da zona vermelha para o patrimônio histórico e arqueológico que se tornou a região

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