Discussão sobre os Direitos da Natureza vêm ganhando força pelo mundo; nós, do Observatório de Comunicação Ambiental (Lei.A), produzimos conteúdo especial para você conhecer e monitorar melhor essa temática
Há cinco anos, no dia 5 de novembro de 2017, a Justiça de Belo Horizonte recebeu um pedido inusitado: o reconhecimento do Rio Doce como um sujeito de direitos. A ação foi movida em nome do Rio Doce pela Organização Não Governamental (ONG) Associação Pachamama, propositalmente na data do segundo aniversário do rompimento da barragem de rejeito da Samarco, em Mariana. O desastre deixou ao menos 19 mortos e devastou os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, no município de Minas Gerais. Além disso, um dos maiores danos causados foi a contaminação da Bacia do Rio Doce pela lama da barragem pelos 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que alcançou dezenas de municípios mineiros e capixabas e desaguou no Oceano Atlântico, chegando até comunidades do sul da Bahia.
No Brasil, a ação era inédita e exigia tomadas de decisão efetivas contra desastres futuros, por meio da elaboração e adoção de um plano preventivo que garantisse o ecossistema e a biodiversidade ainda restantes na bacia. A ação não foi conhecida pelo juiz da causa, por falta dos “pressupostos processuais”, ou seja, por não existir na lei a possibilidade do rio ser uma das partes do processo.
Porém, diante dos crescentes crimes ambientais, uma série de legislações e decisões judiciais em todo o mundo está revendo a leitura sobre a justiça ambiental por meio do reconhecimento da Natureza como um sujeito de direitos, assim como os seres humanos. Nessa perspectiva, os rios parecem estar no centro dessas discussões, destacando-se as recentes decisões judiciais ocorridas em países como Nova Zelândia, Equador, e Colômbia.
Neste conteúdo especial, nós, do Observatório de Comunicação Ambiental (Lei.A), buscamos explicar a origem desta reflexão e contar como ela está tomando forma ao redor do mundo. Afinal, um rio, um conjunto de montanhas ou um oceano devem ter direitos garantidos em constituição, assim como os seres humanos?
#conheça

O livro “Descolonizar o Imaginário: Debates Sobre Pós-extrativismo e Alternativa ao Desenvolvimento” (2016) , escrito por um conjunto de autores e editado por Gerhard Dilger, Miriam Lang e Jorge Pereira, aborda o início da discussão sobre os direitos da Natureza. Nele, o procurador Felício de Araújo Pontes Júnior e o pesquisador da Universidade Federal do Pará Lucivaldo Vasconcelos Barros explicam em um dos capítulos que a tese sobre os Direitos da Natureza foi proposta pela primeira vez em 1972, com a publicação do ensaio “Should trees have standing” (“As árvores têm legitimidade para litigar?), de Christopher Stone. De acordo com o texto de Pontes no livro, desde então, intensificaram-se debates entre juristas, teólogos, filósofos e sociólogos no sentido de admitir a Natureza como sujeito de direitos.
Para Tatiana Souza, professora de direito da Universidade Federal de Ouro Preto e integrante da Rede Internacional para o Constitucionalismo Democrático Interamericano, hoje em dia o pensamento dominante é o que tenta controlar a natureza por meio do conhecimento científico, cada vez mais capaz de entender a engrenagem do universo. “Mas essa racionalidade tem sido muito prejudicial à própria natureza e o movimento que vem crescendo é um movimento dedicado à proteção da natureza por si própria, como um elemento que tem direito intrínseco. Ou seja, ele não é protegido para uma finalidade que é a proteção de outro ser (humano), mas é para a sua própria proteção”, explica.
Segundo a pesquisadora, esse movimento é considerado um giro biocêntrico: uma virada do antropocentrismo (filosofia que considera a Humanidade como centro do universo) para o biocentrismo (filosofia que considera que todas as formas de vida devem ter o mesmo valor). Dessa forma, o pensamento muda de viés. Em vez do meio ambiente fazer parte da vida do homem, o homem é que faz parte da natureza.

Tatiana ainda chama a atenção para o reconhecimento desse pensamento biocêntrico como uma herança valiosa dos povos originários. “Se a gente analisa as conquistas, nesse sentido, no mundo, elas vêm todas de povos tradicionais, de comunidades andinas, de indígenas, que já carregam consigo essa forma de pensar em nossa própria existência como parte da natureza. Não é à toa também que essa disputa no campo do direito só começou a tomar forma durante governos que deram espaço para essa pluralidade de pensamento. Sem eles, não teríamos conseguido nada”.
#monitore
Atualmente podemos citar diversos exemplos de conquistas relacionadas ao Direito da Natureza, como a nova Constituição do Equador (2008), a primeira no mundo a reconhecer expressamente no seu texto os Direitos da Natureza(ou Pachamama).

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Equador – o pontapé constitucional na América Latina

A discussão ocorrida na Assembleia Constituinte do Equador entre 2007 e 2008 foi complexa, contando com vários deputados contrários à decisão de conceder à natureza o direito de ser integralmente restaurada em caso de degradação. No livro “O bem-viver: uma oportunidade de se pensar outros mundos”, o economista Alberto Acosta, presidente da Assembleia Constituinte do Equador e um dos responsáveis pela elaboração do programa de governo, relembra a revolta por parte de conservadores do Direito, que viam a proposta como uma “ladainha conceitual”, mas sem considerar se tratar de um reconhecimento da mudança constante pela qual a sociedade está passando.

No caso do Equador, a aprovação de sua nova Constituição por parte da população aconteceu por meio de um referendo, com expressiva participação indígena, em setembro de 2008, conquistando cerca de 64% dos votos. Uma das maiores inovações trazidas no texto constitucional, que se tornou um grande precedente para a luta pelo direito da natureza na América Latina, diz respeito à introdução do próprio conceito desse tipo de direito. Nele, a “Mãe Terra” é considerada um organismo vivo, digno de tutela constitucional.



Apesar dos avanços constitucionais, a aplicação das normas previstas na Constituição equatoriana não aconteceram de forma fluida. “Várias leis patrocinadas pelo Poder Executivo contradizem seus princípios no campo dos direitos ambientais e, especialmente no que se refere aos direitos da Natureza”, explica Alberto Acosta no sexto capítulo de seu livro.
“Mesmo assim, é possível ver avanços consolidados, como a formação da primeira vara judicial da Natureza nas ilhas Galápagos, assim como a ação de proteção contra o governo da província de Loja, no sul do Equador, em março de 2011, por causa da poluição do rio Vilcabamba. Também teve uma polêmica medida cautelar impetrada em nome dos Direitos da Natureza quando a força pública realizou uma violenta operação contra a mineração informal na província de Esmeraldas, no noroeste do país, em 2011”, complementa.
O caso do Equador foi uma porta aberta para novas conquistas. Nós, do Lei.A, separamos alguns outros casos que podem inspirar a luta pelos Direitos da Natureza, em diferentes contextos e localidades. Confira!
Bolívia – respeito à Pachamama

Em sua reforma constitucional que aconteceu em 2009, o país adotou o conceito indígena “suma qamaña”, originário da cultura Aymara, como princípio ético-moral da sociedade boliviana. Foi, então, inserido no discurso da refundação do Estado uma perspectiva anticolonialista, fiel à cosmovisão dos povos originários que compõem o país. Logo depois, o poder legislativo aprovou, em 2010, uma lei na qual sete direitos da Mãe Terra (Pachamama) são reconhecidos: o direito à vida; à diversidade da vida; à água; ao ar limpo; ao equilíbrio; à restauração; e à vida livre de poluição.
No seu preâmbulo, todas as pessoas são consideradas parte da Mãe Terra, não sendo nunca independentes dela e sim interligadas entre si. O destino de um depende diretamente do outro criando um futuro comum para ambos. Também neste texto, há o seu reconhecimento como a semente da vida, dos alimentos e a sua declaração como provedora da vida humana. Confira na íntegra aqui.
Essa importante mudança fez com que a Bolívia assumisse um relevante papel no cenário mundial no debate dos direitos da Natureza, o que levou à Organização das Nações Unidas iniciar um programa denominado “Harmony with Nature”, no Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (UN-DESA). O programa desenvolve desde 2009 uma série de ações com o objetivo de propor caminhos capazes de ressignificar as relações entre o homem e a natureza.
Colômbia – luta popular em defesa do Rio Atrato

Em 2016, depois de uma intensa mobilização popular, por meio de uma ação de tutela proposta por diversas entidades da sociedade civil organizada, a Corte Constitucional Colombiana (a máxima instância jurídica do país) proferiu a sentença que reconhecia o Rio Atrato, localizado em Chocó, como sujeito de direitos. Foram impostas sanções ao poder público devido à omissão de uma série de degradações causadas pela contaminação associada às atividades de extração ilegal de minérios na Bacia do Rio Atrato e ao uso intensivo e em grande escala de diversos métodos de extração mineral e exploração florestal ilegal.
A região onde o rio está lobcalizado é um dos territórios mais ricos da Colômbia em diversidade natural, étnica e cultural, onde também estão quatro regiões de ecossistemas úmidos e tropicais, em que noventa por cento do território é considerado como uma zona especial de conservação. Nesta área, ficam parques nacionais como “Los Katios”, “Ensenada de Utría” e “Tatamá.
A Corte Constitucional da Colômbia estabeleceu o Governo Nacional como responsável por eleger o representante legal dos direitos do Rio Atrato. O governo, então, via decreto, definiu o Ministério de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável como representante legal do Rio Atrato.
Nova Zelândia – onde um rio é considerado gente

Em 2017, a lei “Te Awa Tupua Bill”, aprovada pelo Parlamento do país em 2017, reconheceu a personalidade jurídica do Rio Te Awa Tupua, assim chamado pelos Maori. A tribo local, chamada Whanganui luta pelo reconhecimento de seus direitos sobre o rio desde os anos 1870. A decisão define que o rio é “um todo indivisível e vivo”, e que seus interesses poderão ser defendidos em procedimentos judiciais por um advogado da tribo e outro do governo. Na época, a comunidade recebeu 80 milhões de dólares neozelandeses de custos processuais após uma longa maratona judicial e outros 30 milhões para melhorar o estado do rio.
No Brasil: muito caminho pela frente
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e conservá-lo para as gerações presentes e futuras”.
Esse é o texto da Constituição Brasileira e, de onde, segundo Tatiana Souza, podem surgir bons argumentos para defender o Direito à Natureza. “Quem está incluído neste ´todos´? São só os seres humanos? Ou qualquer ser vivo? A partir daí, surge um grande debate”.
Apesar da ação movida em nome do Rio Doce pela ONG Associação Pachamama não ter ido para frente, a pesquisadora avalia ter sido importante formalizar no país, por meio deste movimento, uma discussão sobre os Direitos Da Natureza. “Talvez a conquista tenha sido colocar na agenda nacional o debate sobre o papel do Judiciário para o reconhecimento dos direitos da naturez”, ressalta.
Coincidência ou não, depois disso, em 2018, a cidade de Bonito, um dos principais destinos ecológicos de Pernambuco, incorporou os Direitos da Naturezana Lei Orgânica da cidade. A mudança provocou uma alteração no plano diretor da cidade, assim como um endurecimento nas penalidades aos infratores ambientais e o encaminhamento dos recursos federais para ações de fortalecimento da educação ambiental na cidade.


Em Florianópolis, em 2019, também aconteceu algo parecido. Depois de muita discussão e um longo processo de tramitação, a Lei Orgânica do município passou a considerar os Direitos da Naturezaà existência e ao desenvolvimento. “Ainda há muita luta pela frente, mas acho que o pontapé foi dado pelos povos originários e hoje estamos trabalhando para fazer essa discussão ganha ainda mais força na América Latina”, diz Tatiana.

#Aja
Se você se interessou pela discussão sobre os Direitos da Natureza, separamos algumas dicas para aprofundar no tema.
Leia quem escreve sobre o assunto: os livros citados nesta reportagem são um ótimo começo – “Descolonizar o Imaginário: Debates Sobre Pós-extrativismo e Alternativa ao Desenvolvimento”, escrito por um conjunto de autores e editado por Gerhard Dilger, Miriam Lang e Jorge Perei; “O Bem Viver – uma oportunidade para imaginar outros mundos, de alberto Acosta. Outras opções: Direitos da natureza: Ética biocêntrica e políticas ambientais, de Eduardo Gudynas e “Ideias para adiar o fim do mundo” de Ailton Krenak.
Acompanhe as ações da Rede para o Constitucionalismo Democrático Laino-americano. O coletivo é composto por pessoas do mundo inteiro e mantém viva a discussão sobre os Direitos da Naturezaem diversos espaços de debate.
Colabore para a luta dos direitos dos povos originários. Essa forma de ver a natureza como parte de nós vem dessas pessoas, que tem muito a nos ensinar. Lutar pela demarcação de suas terras e por uma maior representatividade dessas pessoas em espaços decisórios é um grande passo para o reconhecimento da importância deles para o mundo.