Cerca de 53% da cobertura vegetal nativa do Brasil ocorrem em propriedades privadas
Saiba como Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs) colaboram com a preservação do meio ambiente no Brasil
A Serra do Cipó, em Santana do Riacho, região Central de Minas Gerais, era uma das paisagens preferidas de um grupo de treze amigos mineiros que sempre se reuniam para acampar entre as montanhas, nos final dos anos 1980. Nessas andanças, um lugar foi capaz de conquistar o coração dos jovens aventureiros pela sua beleza e pelo difícil acesso. Era um ponto específico cercado pela rica vegetação do Cerrado, por onde desciam as águas do Rio das Pedras, com quedas d’água formadoras da Cachoeira do Bicame, uma das mais emblemáticas das redondezas.
Aquele canto foi eleito pela turma como refúgio, para onde voltaram diversas vezes, sempre com a autorização de Seu Eli, dono das terras onde ficava o ponto de encontro dos jovens amigos. O pequeno produtor rural vivia ali há algumas décadas, onde criou seus onze filhos ao lado da esposa, dona Geralda, em uma casa simples de poucos cômodos no alto da montanha. “Era uma festa danada quando a gente chegava. A casa do Eli ficava bastante isolada de tudo, então, eles gostavam de ver gente nova. Sabiam que estávamos ali para cuidar”, relembra Eduardo Sarquis, um dos integrantes do grupo.

Cachoeira do Bicame, na Serra do Cipó. Foto: Laura de Las Casas
Seu Eli, de acordo com Eduardo, vivia no local desde os tempos da exploração do terreno para a extração de diamantes pelos norte-americanos, na década de 1970. Quando a atividade parou de render como o esperado, a terra foi arrematada em leilão por um inglês, que negociou com Eli o total de mil hectares para ele seguir vivendo ali com a família. Com o passar dos anos, seu Eli resolveu vender o terreno, oferecendo-o para a turma de amigos, visitantes cativos, por saber do apreço que tinham com o lugar.
“Na época, nos juntamos e conseguimos comprar 225 hectares. Depois, compramos o restante e, em 1995, transformamos o terreno em Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN)”, conta Sarquis, que atualmente é o síndico da RPPN Brumas do Espinhaço.
Hoje em dia, após uma pequena reforma na antiga casa de seu Eli, transformada em sede da reserva, os amigos seguem usando o espaço como refúgio, mas também disponibilizam para visitação do público, com limite de 30 pessoas por dia para garantir sua conservação. “Assim como esse lugar nos tocou tempos atrás, pode tocar outras pessoas. Quem visita conhece e quem conhece, cuida. Assim vamos tentando ampliar o senso de responsabilidade com o meio ambiente”, complementa Sarquis.
Neste conteúdo, nós, do Lei.A, partimos da origem da reserva Brumas do Espinhaço para te convidar a conhecer melhor esse sistema de conservação chamado Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN). Buscamos informações detalhadas sobre os critérios de criação desses territórios protegidos e mapeamos outros lugares abertos a visitação para quem deseja percorrê-los.
#conheça
Conforme os dados do MapBiomas, o Brasil conta com uma cobertura de vegetação nativa de 569 milhões de hectares, o equivalente a 66% do território do país. Desse total, 53% ocorrem em propriedades privadas. Como essa área é extensa e merece atenção, existem mecanismos legais de conservação destinados à terras privadas desde a década de 1930, definidas pelo Código Florestal.

O Código Florestal sofreu diversas alterações ao longo de quase cem anos de existência. Uma delas foi em 1965, quando as leis ficaram mais rígidas, a fim de conter o avanço da devastação florestal no Brasil. A última alteração do Código foi em maio de 2012, depois de uma intensa batalha no Congresso que diminuiu a proteção ambiental das versões anteriores.
Mas, na época de sua criação, as áreas particulares protegidas no país eram chamadas de “florestas protetoras”. Só a partir de 1990 que o decreto federal nº 98914 veio regulamentar as RPPNs. Apenas a partir de 2000 que elas conquistaram o status de Unidades de Conservação, com a aprovação da lei nº 9985, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc).
Para saber mais sobre o SNUC, assiste filme produzido pelo Lei.A em 2019 no nosso Canal do Youtube. Clique aqui!

As RPPNs se tornaram, então, as Unidades de Conservação, doadas ao Estado em regime de perpetuidade, sem perda da titularidade, para criar áreas de conservação. De acordo com o Instituto Estadual de Florestas (IEF), a RPPN é , criada por iniciativa do proprietário e reconhecida pelo poder público. Não há exigências quanto ao tamanho mínimo ou máximo de uma RPPN, já que a sua criação depende apenas do desejo do proprietário, podendo ser criada em áreas rurais ou urbanas. Em troca, há benefícios, como:
- – direito da propriedade assegurado;
- – isenção de Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR);
- – prioridade na análise de pedido de crédito rural;
- – possibilidade de cooperação público-privada para proteção, gestão e manejo da UC;
- – prioridade de análise para projetos apresentados ao Fundo Nacional de Meio Ambiente.
RPPNs geram renda para as cidades
Já para o município onde a RPPN está inserida, o benefício maior é o recebimento de ICMS Ecológico, mecanismo tributário que busca incentivar as cidades a promoverem ações de preservação dos recursos naturais.
A fatia da receita estadual do ICMS, por lei, deve ser passada aos municípios para ser utilizada em atividades relacionadas à conservação do meio ambiente. Esse valor, por sua vez, é calculado a partir da quantidade e do tamanho das Unidades de Conservação presentes no município. As RPPNs, portanto, contribuem para aumentar o repasse do ICMS municipal.

O que se pode fazer numa RPPN?
Quem possui uma RPPN tem autorização para desenvolver atividades no território, como pesquisas científicas e visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais. “Sempre aparece gente querendo usar o espaço para algum tipo de levantamento. Esses dias mesmo uma menina me escreveu querendo coletar libélulas nas Brumas do Espinhaço. A gente costuma pedir um estudo de impacto e discute coletivamente sobre essa autorização. Incentivamos o uso do espaço para pesquisas, sempre com o devido cuidado de preservar”, explica.
Além das estadas para fins científicos, as visitas turísticas acontecem desde sempre, mas agora contam com o amparo da Associação Jardim dos Cristais e têm o custo de R$ 55. “Os moradores de Santana do Riacho têm passe livre na reserva. O valor que arrecadamos, cobrado aos outros visitantes, é destinado à manutenção da trilha até a cachoeira e também aos projetos educativos da associação, que desenvolve um trabalho muito sério com a comunidade”, conta.
#monitore
Minas Gerais: campeã de RPPNs
De acordo com a Confederação Nacional das Reservas Particulares do Patrimônio Natural (CNRPPN), no Brasil existem cerca de 1.665 reservas. Os territórios somam 800 mil hectares de áreas naturais e biodiversidade espalhadas pelo país. Minas Gerais é o estado com maior número de RPPNs criadas. De acodo com o Instituto Estadual de Florestas (IEF), até julho de 2020 foram reconhecidas 259 RPPNs estaduais e federais mineiras, protegendo uma área de, aproximadamente, 107 mil hectares. Em Minas Gerais, o procedimento para criação de RPPNs está disciplinado pelo Decreto Estadual nº 39.401/1998.
Para Maria Cristina Weyland Vieira, geógrada e presidente da Associação de RPPNs de Minas Gerais, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) teve papel importante para Minas Gerais chegar a esse ponto. “O IEF se empenhou, por meio de vários programas de incentivo para que as pessoas se engajassem na criação e preservação desses espaços”, relembra.
Outro fator pontuado por ela foi o Programa de Incentivo às Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) da Mata Atlântica, coordenado pela Aliança para a Conservação da Mata Atlântica (uma parceria entre as ONGs Fundação SOS Mata Atlântica e Conservação Internacional) e a The Nature Conservancy (TNC). O projeto ofereceu diversos editais para patrocinar a criação e a implementação das RPPNs em Minas, principalmente, na região da Serra da Mantiqueira.
Maria Cristina também chama a atenção para o fato de Minas Gerais ser alvo de tantas mineradoras e outras empresas que precisam explorar intensamente os recursos naturais do estado. “Para compensar as áreas destruídas, muitas empresas criam RPPNs. Então, nesse caso, a presença de áreas preservadas está diretamente relacionada à existência de áreas depredadas”.

#aja
A cabeça pensa onde o pé pisa: conheça para se inspirar – e preservar!
Nós, do Observatório Lei.A, defendemos que conhecer é o primeiro passo para quem quer se envolver com a preservação do meio ambiente. Pensando nisso, separamos aqui alguns exemplos de RPPNs abertas ao público, como as Brumas do Espinhaço, que podem ser visitadas. Confira as opções e, caso se interesse por alguma delas, planeje um passeio até lá.
RPPN Santuário do Caraça (Santa Bárbara/MG) | São 10.187,89 hectares de área de preservação,localizada em um lugar que integra a área destinada às Reservas da Biosfera da Serra do Espinhaço e da Mata Atlântica, reconhecidas pela UNESCO em 2005. Também está inscrita na Área de Proteção Ambiental ao Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte (APA Sul – RMBH) e é um dos divisores da bacia hidrográfica do Rio Doce. Quem visita o local e escolhe passar a noite na pousada destinada aos turistas pode ter a chance de conhecer o lendário lobo guará, que visita a escadaria da igreja todas as noites. O santuário guarda diversas opções de trilhas e cachoeiras, podendo preencher dias e mais dias de programação. Em entrevista ao Lei.A, o coordenador ambiental do Caraça, Douglas Silva, contou a história desse lugar especial.
Pico do Inficionado, no Caraça. Foto: Divulgação
RPPN Cabeceira do Prata (Jardim/MS) | Localizada no entorno do Pantanal, a reserva preserva um grande manancial de beleza cênica do Brasil: o Rio da Prata. No local são desenvolvidas atividades de pesquisa científica, conservação e ecoturismo. O passeio oferece aos visitantes atividades como cavalgadas, observação de pássaros e trilhas onde podem ser observados animais típicos da fauna pantaneira e ainda levam os turistas ao principal atrativo da RPPN, o mergulho nas águas cristalinas do rio da Prata um dos principais mananciais hídricos da Serra da Bodoquena.
Foto: Haroldo Palo Júnior
RPPN Fazenda do Rio Negro (Aquidauana/MS) | A Rio Negro é uma das mais tradicionais fazendas da região de Aquidauana e ficou famosa ao servir de locação para as novelas brasileiras “Pantanal” e “América”. Dos oito mil hectares da fazenda, sete são protegidos pelo sistema de RPPN. O lugar abriga uma paisagem natural de rara beleza cênica e grande riqueza biológica, destacando a presença de áreas úmidas únicas na região, representativas do Pantanal da Nhecolândia e marcadas por centenas de lagoas de água doce e alcalina, cordilheiras, salinas e baías. Além disso, a área é morada de várias espécies ameaçadas de extinção, como a ariranha, o cervo-do-pantanal e a arara-azul.
Sede da RPPN Fazenda Rio Negro, onde é gravada a novela Pantanal. Foto: Divulgação
RPPN Feliciano Miguel Abdala (Caratinga/MG) | A área fica no município de Caratinga, à margem esquerda do Rio Manhuaçu, na Bacia do Rio Doce. São 957 hectares de território protegido, formada por 80% de matas em bom estado de conservação e 20% em estado de regeneração. O local acabou se tornando um santuário para uma das espécies mais ameaçadas do mundo: o macaco muriqui. Nos últimos 30 anos, a RPPN tornou-se uma das áreas mais bem estudadas do Brasil. Atualmente, a reserva é gerenciada pela ONG Preserve Muriqui, presidida por Ramiro Abdala, dono da propriedade.
RPPN Serra do Teimoso (Jussari/BA) | A reserva protege 200 hectares de Mata Atlântica primária, onde foram descobertas novas espécies de animais e plantas, além de espécies ameaçadas de extinção que só existem no sul da Bahia. Desde 1997, os trabalhos de educação ambiental, ecoturismo e pesquisa desenvolvidos na RPPN transformaram a realidade regional, antes baseada na exploração de madeira, em área de Mata Atlântica, passando a valorizar a importância desse patrimônio. Além de parcerias com ONGS, universidades e prefeituras da região para o desenvolvimento dos projetos de educação ambiental, a reserva também oferece uma diversidade de opções ecoturistas, como trilhas, arvorismo e observação de fauna e flora.
RPPN Chapadão da Serra Negra (Santa Bárbara do Monte Verde/MG) | Ela é vizinha do Parque Estadual Serra Negra da Mantiqueira, no município de Santa Bárbara do Monte Verde. Com 20 hectares, o local é preservado e contém alguns trechos de Mata Atlântica, além de trilhas, grutas e cachoeiras. Nessa unidade de conservação são desenvolvidos projetos de educação ambiental com o intuito de receber pesquisadores, escolas e pessoas que buscam o contato com a natureza.
RPPN Brumas do Espinhaço (Santana do Riacho/MG) | A Cachoeira do Bicame é a grande jóia da RPPN, que fica a aproximadamente 15 km do arraial da Lapinha, município de Santana do Riacho, na Serra do Espinhaço, região central de Minas Gerais. A queda d’água de aproximadamente 25 metros de altura cai em um poço de águas de cor cobre, profundo em alguns pontos e cercado pela vegetação do cerrado.
Que tal criar ou incentivar a criação de novas RPPNs?
Se você tem interesse em criar uma Reserva Particular do Patrimônio Natural ou conhece alguém que gostaria de transformar uma área, seja do tamanho que for, em um território protegido, é só seguir as dicas.
