Conheça as Cartas do Patrimônio, da letra à regra

Nós, do Observatório Lei.A, preparamos neste mês um conteúdo especial com alguns aspectos e características das Cartas Patrimoniais, brasileiras e mundiais

Seminário realizado em Ouro Preto lança nova Carta Patrimonial da legislação do Patrimônio Cultural brasileiro

Aqueles que se interessam pelo Patrimônio Cultural – ou o Meio Ambiente Cultural – certamente já se depararam com menções ou citações diretas às Cartas Patrimoniais. E mesmo quem não se interessa pelo assunto, indiretamente, pode ver as influências destas cartas na preservação da herança cultural ou modo de vida, no aproveitamento de uma arquitetura ou de uma paisagem urbana importante. 
Por exemplo, o Conjunto Moderno da Pampulha, em Belo Horizonte/MG, é listado como Patrimônio Mundial da Humanidade, reconhecimento que surgiu das orientações de uma carta patrimonial conhecida como Convenção de Paris de 1972.

Foto: fefeio

Recentemente, em Mariana, primeira capital de Minas Gerais, uma reforma da Praça Doutor Gomes Freire, conhecida popularmente como “Jardim”, no centro histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sofreu questionamentos por não ter atendido às diretrizes da Carta dos Jardins Históricos Brasileiros (Carta de Juiz de Fora) de 2010 e da Carta de Florença de 1981.

Coreto da Praça Doutor Gomes Freire em 2019 – Foto: Amanda Almeida 
Coreto da Praça Doutor Gomes Freire em 2021 – Foto: Karina Peres

Para os profissionais da arquitetura, as Cartas Patrimoniais também orientam o processo criativo, como é exemplo o trabalho de Lina Bo Bardi, uma das arquitetas mais renomadas do Brasil, para o SESC Pompéia, em São Paulo capital, que foi amparado nas recomendações da Carta de Veneza, elaborada em 1964.

Foto: Fernanda Cury

Mas, afinal, o que são, qual a origem e qual a importância das Cartas Patrimoniais? É este assunto que nós, do Lei.A, vamos explorar neste conteúdo.

# conheça

A finalidade das Cartas Patrimoniais

As Cartas Patrimoniais são documentos e textos densos, elaborados em encontros de especialistas da área, e que contêm geralmente alguns pressupostos, conclusões de debates e recomendações ou prescrições. São, portanto, documentos técnicos aplicados por órgãos de proteção do patrimônio cultural, arquitetos, engenheiros, juristas, entre outros, na formulação e execução de políticas públicas de proteção do patrimônio cultural como, por exemplo, em obras, reformas, construções e legislações.

Segundo Flávio de Lemos Carsalade, arquiteto e urbanista, professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as Cartas Patrimoniais são consolidações “do avanço científico disperso que se junta em pontos doutrinários” como marcos indicativos de atuação futura para determinadas comunidades, e de registro do que já foi estudado pelos acadêmicos.

As Cartas Patrimoniais são fruto do seu tempo, dos debates suscitados à época e devem ser lidas com cuidado para que não se façam delas algo único e objetivo.

Origem das Cartas Patrimoniais

Reuniões internacionais dedicadas às questões do patrimônio são realizadas na Europa pelo menos desde o século XIX. Organizadas por sociedades de historiadores, de museólogos ou de arquitetos, muitas delas foram dedicadas ao tema da restauração e conservação dos monumentos históricos, entendidos na época quase que restritamente como obras de arquitetura que expressavam a identidade nacional de um povo, e não como interessantes à cultura, história, antropologia e arte.

Já no início do século XX – e até mesmo antes, o tema do restauro estava pautado.  Vários de seus teóricos, com destaque para Eugène Viollet-le-Duc, John Ruskin e Camillo Boito, já haviam feito “escolas” de seguidores. Por exemplo, em 1904, o Congresso de Madrid, um dos congressos internacionais de arquitetos, redigiu uma recomendação sobre “A Preservação e Restauração dos Monumentos Arquitetônicos”. Este documento foi elaborado a partir de um trabalho apresentado por um seguidor do teórico francês Viollet-le-Duc, da vertente conhecida como restauro estilístico. Propunha que havia monumentos arquitetônicos que deveriam ser consolidados e preservados e outros que deveriam sofrer restauração para continuar com seu uso, levando em consideração o edifício como um todo.

Mas de fato, foi a Primeira Guerra Mundial o marco simbólico da consolidação da teoria e prática da conservação-restauração. Após o conflito encerrado em 1919, os “vitoriosos” fundaram a Liga das Nações e, dentro dela, o Comitê Internacional de Cooperação Intelectual, cuja preocupação com a conservação dos monumentos foi uma das pautas. A ciência da restauração ganhava, então, os seus contornos mais claros, com debates de métodos científicos aplicados ao exame e conservação de obras de arte.

A partir de então, várias conferências, congressos, seminários e encontros foram organizados para se estabelecer um certo consenso sobre conceitos, diretrizes e técnicas a serem aplicadas na proteção do patrimônio cultural.

Nós, do Lei.A, selecionamos Cartas Patrimoniais famosas e relevantes da área do patrimônio cultural para você conhecer.

Parthenon em Atenas – construído em homenagem a Deusa Atenas – Foto: Ryan Bouck via Flickr

A primeira carta patrimonial: Conferência de Atenas de 1931

A Conferência, iniciada em 1930, debatia as obras de arte em geral, como os quadros e esculturas. Havia a necessidade de dar maior atenção aos monumentos edificados, à arquitetura. Para isso, se organizou, no ano seguinte, em Atenas, o  I Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos em Monumentos. Cerca de vinte países foram representados por mais de uma centena de especialistas que apresentaram trabalhos em sessões orientadas ao grande tema dos monumentos arquitetônicos.

Os temas das sessões foram variados, como “Doutrinas e princípios gerais”, “Medidas administrativas e legislativas relativas a monumentos históricos”, “aprimoramento estético de monumentos antigos”, “materiais de restauração” e “técnicas de conservação”. 

Durante o Congresso, os representantes apresentaram seus trabalhos em painéis temáticos que expunham a situação do restauro em seus países. Também debatiam as tendências e avanços no campo da preservação e restauro. Por exemplo, um dos representantes da Itália na Conferência de 1931, Gustavo Giovannoni, apresentou em uma de suas falas o avanço que o seu país experimentou com duas leis específicas sobre os monumentos e o seu entorno.

Outras cartas referências

Além da primeira Carta Patrimonial, de 1931, outras cartas ganharam projeção, e se tornaram muitas delas referências de seu tempo. Até os dias de hoje, essas Cartas orientam as intervenções ou as classificações de bens culturais enquanto patrimônio a ser salvaguardado.

Carta de Atenas (1933)

Atenas foi novamente palco de novo congresso e de nova Carta Patrimonial, desta vez em 1933. A ocasião foi o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, e esteve mais centrada no planejamento urbano. 

A Carta foi resultado das constatações dos principais problemas urbanos observados nas grandes cidades europeias e norte americanas, sobretudo a espacialização, mas também sobre as condições sanitárias das grandes cidades, a circulação, e também o patrimônio cultural a ser salvaguardado por serem de interesse geral e a ameaça que a estes ronda pelo fato mundializado da expansão dos tecidos urbanos.  Assim, com viés funcionalista das cidades, consta que o meio urbano possui 4 funções: habitação, trabalho, lazer e circulação, estabelecendo que as cidades devem ser estudadas e melhoradas seguindo o princípio da racionalidade. 

Sobre o patrimônio cultural arquitetônico, segundo a Carta, cada caso deve ser mais bem avaliado, mas a orientação geral é que os edifícios sejam conservados, desde que não prejudiquem as boas condições de vida da população. Seguindo a tendência dos congressos anteriores sobre o tema, é desencorajado o emprego de estilos ou técnicas do passado.

Carta de Veneza (1964)

Fruto do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, reunidos entre os dias 25 e 31 de maio de 1964, a Carta de Veneza tem como ponto mais importante a defesa da documentação autêntica da operação de restauração. Isto é, se não houver registro de como um edifício era originalmente, não se deve especular sobre suas partes faltantes e descaracterizadas. É melhor que não se execute nenhuma tentativa de restauro. Pretende o fim da restauração hipotética, aquela que não é fruto do dado histórico. 

No mesmo sentido de salvaguardar tanto a obra de arte quanto do seu testemunho histórico, a Carta também orienta uma extensa documentação, em desenhos e fotografias, do processo de restauro empreendido no monumento.

Convenção de Paris (1972)

Captando os ecos da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano ocorrida em Estolcomo em 1972, na qual foram discutidos os grandes problemas ambientais da Terra, foi adotada a Convenção de Paris de 1972 que tratou da indissociabilidade entre Patrimônio Cultural e Patrimônio Natural, definindo-os, estabelecendo bens considerados de valor universal excepcional (Lista do Patrimônio Mundial) e bens sob ameaça e com risco de desaparecimento (Lista do Patrimônio Mundial em Perigo). e instituindo formas de salvaguarda, como o título de Patrimônio Mundial da Humanidade e o Fundo do Patrimônio Mundial.

Carta do Restauro (1972)

A chamada Carta do Restauro é, na verdade, um conjunto de normas que orientam intervenções de restauração em qualquer obra de arte, que vão desde os edifícios arquitetônicos, os conjuntos de edifícios de interesse, pinturas e esculturas, centros históricos, jardins de grande importância, entre outros. Ela foi lançada pelo Ministério da Instrução Pública do Governo da Itália.

São descritas todas as diretrizes, etapas, responsabilidades, trabalhos, técnicas e programas para a preservação e restauração de bens históricos, artísticos e culturais.

Carta de Burra (1980)

A Carta de Burra foi desenvolvida em 1979 pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) da Austrália e é baseada nos conhecimentos e na experiência dos seus membros.

Apesar de seu caráter normativo destinado àqueles que planejam, executam, gerem ou são proprietários de bens de valor de patrimônio histórico, inclusive com o desenho do processo que vai do estudo às ações nos bens, o grande marco desta Carta é a reintrodução da possibilidade de reconstrução do bem, total ou parcialmente.

Pela definição que a Carta faz, a reconstrução é o restabelecimento a um estado anterior conhecido, com o máximo de exatidão e distinguibilidade, isto é, pela introdução de materiais diferentes a fim de ressaltar a intervenção e possibilitar uma reversão.

No entanto, a Carta é cautelosa, alertando que a reconstrução deve ser limitada à colocação de elementos que completem alguma entidade desfalcada do bem e se tal intervenção seja condição para que o bem sobreviva e tenha utilização  ou recupere uma significação simbólica.

“A reconstrução deve ser identificável por observação próxima ou através de interpretação adicional.” | Artigo 20.2 da Carta de Burra

Carta de Florença (1981)

A Carta de Florença é produto da reunião do Comitê Internacional para Jardins Históricos do Icomos, que teve lugar em Florença, em maio de 1981. Esta Carta, que pretendeu ser um acréscimo à Carta de Veneza de 1964, inovou porque tratou exclusivamente de jardins históricos como Patrimônio Cultural a ser estudado, identificado e resguardado. 

Esta Carta destaca que as intervenções nos jardins históricos devem ser feitas levando-se em conta a sua peculiaridade, que é justamente a sua constituição por seres vivos, principalmente os vegetais. Assim, por serem perecíveis e renováveis, requerem medidas especiais e distintas daquelas voltadas para os outros patrimônios.

Recomendação de Paris (2003)

Elaborada durante a Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunida em Paris no ano de 2003, é a primeira Carta a tratar sobre Patrimônio 

Imaterial.

A Carta trabalha o conceito de “Património Cultural Imaterial” com o importante reconhecimento de sua capacidade de recriação por parte de sua comunidade em interação com o ambiente. 

O documento estabelece a criação do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial para aconselhar, acompanhar e receber propostas de inscrição de bens na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade e as avalia, entre outros.

#monitore

Cartas Patrimoniais brasileiras

O Brasil, além de seguir as recomendações e participar das reuniões e congressos mundiais, foi também país de discussões intensas sobre os rumos do Patrimônio Cultural brasileiro. Conheça algumas cartas patrimoniais do nosso país:

Imagem: Fundação Oscar Niemeyer

Compromisso de Brasília (1970)

Desenvolvida no 1º Encontro de Governadores para Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Brasil, enfatizou a responsabilidade de governos estaduais e secretarias municipais com a conservação, preservação, catalogação e políticas educativas dos bens culturais.  Especifica também políticas públicas educativas, como a inclusão do ensino de História da Arte no Brasil.

Foto: Anderson Schneider – IPHAN

Compromisso de Salvador (1971)

É uma continuidade do Compromisso de Brasília, realizado com o II Encontro de Governadores para Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Brasil. Na Carta, recomenda-se a criação do Ministério da Cultura e secretarias ou fundações estaduais. Recomenda ainda que se forje parcerias entre órgãos de proteção do patrimônio cultural e universidades para o fomento à pesquisa e formação voltados aos estudos e proteção aos acervos de valor cultural.

Foto: Marcio Vianna – IPHAN

Carta de Petrópolis (1987)

Esta Carta é a condensação do 1º Seminário Brasileiro para Preservação e Revitalização de Centros Históricos, e a sua importância é de conceituar o sítio histórico urbano em seu aspecto vivo e de uma testemunha da cultura dinâmica, ao invés de um sentido museau – de um espaço da história passada. 

A Carta também levanta recomendações legais da preservação desses sítios, como o tombamento, inventário, normas urbanísticas, isenções e incentivos fiscais, declaração de interesse cultural e desapropriação. Estabelece ainda uma noção de “valor social” que deveria se sobrepor ao “valor de mercadoria”.

Foto: Marcio Vianna – IPHAN

Carta de Cabo Frio (1989)

A partir do seminário organizado pelo Comitê Brasileiro do Icomos, chamado de Encontro de Civilizações Nas Américas. Como ponto alto da Carta, destaca-se que “é preciso rever a história americana, reconhecendo o papel das populações do continente”, pretendendo com isso valorizar a autonomia dos povos originários, assegurar-lhes a posse e o usufruto exclusivo das suas terras e preservação de suas línguas e, como forma de enfatizar que a história e ocupação do continente precede a chegada dos europeus, ressalta como fundamental preservação de sítios geológicos, arqueológicos, fossilíferos e naturais.

Foto: Condephaat/Folheto

Declaração de São Paulo (1989)

Esta Carta foi elaborada na Jornada Comemorativa do 25º aniversário da Carta de Veneza, que precede a ida à Assembléia Geral do Icomos convocada para o ano seguinte. O objetivo com a Carta é de reconhecer a importância da Carta de Veneza, preservando-a como fonte de consulta e testemunho documental, mas reconhecendo sua temporalidade, é necessário considerar todo tipo de inovação tecnológica ao longo destes 25 anos para a revisão de conceitos e recomendações.

Foto: Glauber Souza – IPHAN

Carta de Brasília (1995)

A Carta de Brasília de 1995 é um dos documentos mais importantes de recomendações patrimoniais elaborado no Brasil. A Carta teve a mão de outros representantes do Cone Sul, e tratou sobre a autenticidade de culturas sincretistas e de resistência, expressa por bens tangíveis e intangíveis. 

Esta Carta traz a ponderação sobre a atribuição de significado e valor das práticas da realidade regional, e que o reconhecimento destas se torna uma forma de “guardar” nosso patrimônio cultural. 

Foto: IPHAN

Carta de Fortaleza (1997)

Em comemoração aos 60 anos de fundação, o Iphan realizou o Seminário “Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção” em 1997. Na ocasião, o plenário se reuniu para deliberar e elaborar diretrizes e instrumentos legais e administrativos com objetivo de identificar, proteger, promover e fomentar os processos e bens que constitui a identidade e memória dos diferentes grupos que conformam a sociedade brasileira, como suas formas de expressões singulares, modos de criar, fazer e viver, e suas genialidades artísticas e tecnológicas.

Foto: Roberto Rosa – IPHAN

Carta de Olinda (2009)

A Carta de Olinda foi desenvolvida no I Seminário de Avaliação e Planejamento das Casas do Patrimônio, que aconteceu no final de 2009. Seu objeto é as Casas do Patrimônio, que é um projeto pedagógico de educação patrimonial desenvolvido e administrado pelo Iphan. 

A Carta então, realiza um balanço das primeiras Casas implementadas, além de elaborar diretrizes e instrumentos legais para a manutenção do projeto.

Foto: Reprodução Instagram leigeral.patrimonio

Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira do Patrimônio Cultural (2023)

Nos dias 04 e 05 de abril de 2023, profissionais atuantes na salvaguarda do Patrimônio Cultural se reuniram em Ouro Preto, Minas Gerais, para o Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural. O objetivo era a discussão sobre o atual panorama da proteção jurídica dos bens culturais no Brasil. O evento foi organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Direito do Patrimônio Cultural (Nepac), vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), e a Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Proteção do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG).

Desse evento, saiu a mais atual Carta Patrimonial brasileira, a “Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira do Patrimônio Cultural” que poderá ser utilizada na formulação e interpretação de leis para a proteção de bens culturais brasileiros. 

A Carta estabelece que as leis existentes se constituem como o mínimo de proteção e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro e não se admite alteração que implique em redução do sistema protetivo alcançado.

Foram estabelecidas 33 diretrizes para futuras leis ou alterações das já existentes, dívidas em diretrizes de abrangência e principiológicas, diretrizes instrumentais, diretrizes garantísticas, diretrizes orgânicas e diretrizes sancionatórias e compensatórias.

A íntegra da “Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira do Patrimônio Cultural” pode ser acessada aqui ou no instagram @leigeral.patrimonio.

Influência das cartas na legislação brasileira 

Depois de entender o que são as Cartas do Patrimônio e algumas das mais notáveis, vamos falar um pouco da sua importância em terras brasileiras e de que forma elas passam a ter (ou não) força jurídica para serem observadas. 

O professor de Direito e coordenador do Núcleo de Pesquisas em Direito do Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Carlos Magno de Souza Paiva, nos disse que quando o Brasil assina e ratifica as convenções, acordos e tratados internacionais, como ocorreu com a Convenção de Paris de 1972, as Cartas Patrimoniais passam a ser consideradas de observância obrigatória, inclusive com status supralegal, ou seja, que não podem ser modificadas pela legislação brasileira.

As Cartas também podem ser usadas como fundamento de prova em processos judiciais, enquanto fonte material do Direito, no caso de não serem Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil.

Muitas Cartas Patrimoniais tiveram influência na formulação da legislação brasileira ao longo dos anos. Isso nos mostra um pouco da recepção que as ideias e recomendações de que as cartas tiveram no Brasil entre especialistas e gestores públicos. Mas a influência das Cartas é mais extensa. Afinal, todas elas trazem resoluções com a pretensão de influenciar as governanças locais.

É verdade que as Cartas atingem mais diretamente os trabalhos da autarquia e as fundações estaduais voltadas à proteção do patrimônio, tanto que Rodrigo Melo Franco de Andrade cita a Carta de Atenas de 1931 como norteadora do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (o atual Iphan), do qual foi um dos idealizadores. 

As Cartas também são usadas na elaboração e justificativa das intervenções em bens protegidos, como forma de mostrar que o arquiteto restaurador não impõe imperativamente as soluções adotadas, e sim que segue recomendações que já foram expostas, testadas e debatidas.

As Cartas Patrimoniais e as Constituições Federais brasileiras 

O primeiro paralelo entre as Cartas Patrimoniais e a Constituição Brasileira aparece em 1934, três anos após a primeira Carta Patrimonial (a Carta de Atenas de 1931). Em seu Capítulo III, a Constituição de 1934 dizia: “Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País[…]”.

Estas letras da Constituição parecem estar alinhadas à seguinte recomendação da Carta de Atenas: “é necessário uma atuação apropriada dos poderes públicos”. À primeira vista, a recomendação não parece muito importante, mas ao atribuir a responsabilidade dos estados nacionais no cuidado com o patrimônio cultural, ela pretende tornar o patrimônio um bem do coletivo, mesmo que o bem esteja em propriedade individual.

O mesmo tema reaparece na Carta de Paris de 1968 (Recomendações de Paris de 68) e também na Constituição Federal de 1988, nossa última Constituição. Mas esta nossa Constituição detalha um pouco melhor os bens culturais que a União, os Estados, Municípios, Distrito Federal e órgãos específicos possuem o dever de resguardar: “os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”. Estes bens culturais destacados pela Constituição são os que também aparecem definidos na Carta de Paris de 68.

Talvez a mais nítida influência das cartas esteja na Lei nº 4.845, de 1965. Esta lei proíbe a saída para o exterior de obras de arte e ofícios produzidos no país até o fim do período monárquico, e tem inspiração nas Recomendações de Paris de 1964, que além de trazer a conceituação de bens culturais, recomenda medidas específicas para impedir o tráfico de obras de arte e de bens culturais. O fato de estarem separadas apenas por um ano torna a correlação mais forte. A mesma temática aparece no artigo 23 da Constituição de 1988, onde se lê (no parágrafo 4) que: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”.

Durante a década de 1970, o que mais forte repercute na legislação brasileira é a Convenção de Paris de 1972 que trabalha novas definições de salvaguarda do patrimônio cultural e natural. O Brasil reafirma o compromisso com essa Convenção ao ratificá-la por meio do Decreto nº 80.978/1977, introduzindo-a no ordenamento jurídico brasileiro e, a partir disso, alguns sítios brasileiros de grande importância são listados como patrimônio cultural da humanidade, primeiro com Ouro Preto, seguido de Olinda.  Em Minas Gerais ainda tivemos Diamantina, Congonhas e o Conjunto da Pampulha listados como patrimônio mundial pela Unesco.

Neste caso em que se reconhece o patrimônio como de importância mundial, podemos ver que o impacto da carta se estende para além da letra constitucional, pois as cidades passam a contar com a visibilidade e os potenciais de negócios que ser listado pela Unesco proporciona, e os benefícios que elas recolhem podem aparecer no turismo. 

# aja

Para conhecer mais sobre as discussões acerca do Patrimônio Cultural, nós do Observatório de Comunicação Ambiental (Lei.A), sugerimos que você acompanhe o site e demais redes sociais do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos).

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