Colonização e mineração: raízes profundas que explicam o presente

Em entrevista para o Observatório Lei.A, o pesquisador argentino Horácio Araoz resgata reflexões sobre como tudo começou: desde a extração de ouro e prata na América Latina até os mega empreendimentos minerários dos dias atuais.

Em menos de uma década, graves desastres causados por mineradoras aconteceram em Minas Gerais matando centenas de pessoas e deixando ao menos dois grandes rios – Doce e Paraopeba – comprometidos por toneladas de metros cúbicos de lama. De lá para cá, em vez das experiências terem deixado claro que algo sério estava fora da ordem, novos projetos, muitas vezes comandados pelas mesmas empresas, não param de surgir, propondo a exploração de novas áreas e impactando outras comunidades. Um exemplo é o caso da Serra do Curral, cartão postal mineiro em processo de tombamento, que nem por isso conseguiu escapar da ação das mineradoras, provocando a sociedade civil a se organizar para manter suas montanhas protegidas. 

Esse modelo de mineração adotado no Brasil é tema de dezenas de conteúdos do Observatório Lei.A, na tentativa de provocar a sociedade civil a refletir sobre a forma como a atividade é praticada no país, além de esclarecer sobre as possibilidades de envolvimento nas decisões relativas a projetos capazes de afetar a vida de todos nós. Nessa toada, entrevistamos o cientista político argentino Horacio Machado Aráoz, autor do livro “Mineração, genealogia do desastre” (editora Elefante), que há 20 anos vem se dedicando a investigar projetos de mineração em países como Chile, Argentina e Peru, em busca de uma leitura aprofundada desde a origem da extração do minério na América Latina até os dias atuais. 

Morador de Catamarca, cidade do norte da Argentina, Araoz começou a se envolver com o tema após se deparar com a instalação do  primeiro grande projeto de mineração em sua cidade. Hoje, ele é pesquisador independente do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CONICET), no Instituto Regional de Estudos Sócio-Culturais (IRES-CONICET-UNCA), onde coordena o Coletivo de Pesquisa em Ecologia Política do Sul. Ele também é professor regular do Bacharelado em Trabalho Social, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nacional de Catamarca, e esteve em Minas Gerais para uma temporada, no final de 2022, como convidado do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 


Na conversa com o Lei.A,  Araoz  explicou de que maneira a mineração se relaciona com o processo de colonização da América Latina, colaborando para uma nova ordem mundial. Também comentou a conduta dos governos nacionais nas últimas décadas e apontou caminhos para se pensar em outras alternativas possíveis. “Se acostumar com a barbárie é a própria mineralização do pensamento“, diz.

Lei.A – Como a mineração está relacionada à colonização da América Latina? 

Este modelo de mineração que hoje estamos vivendo foi o meio de produção do mundo moderno. Foi o resultado de um árduo e violento processo de colonização.  Existem infinitos registros que apontam a  história da modernidade da sociedade, começando na Europa, com a Revolução Industrial na Inglaterra e a Revolução Francesa. Mas, na verdade, tudo começa num processo anterior, que é a revolução mineral, que teve como ponto de partida a exportação do Cerro Rico, de Potosí, no século XVI.

Nessa época, não havia estados, nem a entidade Europa, não existia ainda a entidade América. A forma do Estado, o comércio mundial e todas as instituições que são próprias da sociedade moderna foram o resultado de um processo de invasão e invenção, que foi a conquista da colonização, onde a exploração mineral foi a força motriz. A Espanha, os colonizadores, buscavam ouro e prata ali, mas encontraram mais prata do que ouro, e a prata se converteu materialmente em dinheiro do emergente comércio mundial. Com a prata que se extraiu de Potosí, principalmente, mas também de Anahuac e outros territórios, além do ouro que se vai extraindo nos distintos ciclos –  aqui em Minas Gerais, por exemplo, no século XVII -, foi possível  uma mudança na importância e na escala do comércio.  Então o capitalismo que sempre surge como uma mudança, uma nova ordem econômica mundial, só pôde conseguir esse alcance que tem hoje a partir do dinheiro que na época vinha na prata que saia daqui, da América Latina. E isso teve diversas consequências pra gente.

As veias abertas da América Latina estão expostas, desde  a invasão dos colonizadores, em Potosí,  até hoje.

Lei.A – De que forma a mineração contribuiu para essa nova ordem mundial? 

Com a extração de prata e de ouro o comércio passa a ter uma centralidade, passa a ganhar cada vez mais prestígio. Ele passa a  demandar cada vez mais tempo de trabalho e ocupação humana. Então, a mineração, para se dizer curtamente, é o que impulsionou o processo de mercantilização do mundo.

Se instaurou, então, uma dinâmica de transformar as coisas em mercadoria, que significa uma drástica mudança econômica, porque antes todas as atividades produtivas, de todas as civilizações, estavam orientadas a produzir primeiro os bens de subsistência, que são aqueles essenciais para a vida. As civilizações, antes do capitalismo chegar, tinham como prioridade assegurar o sustento das populações, e isso mudou com a chegada do comércio, quando tudo isso que é básico para a vida – a moradia, o alimento, por exemplo – passou a ocupar um lugar secundário por causa da existência do dinheiro. E aí a gente vê o início de um processo que resultaria no que temos hoje, que é uma necroeconomia. Esse modelo de economia – que  lucra com a morte – existe atualmente em contraponto com a bioeconomia, que está centrada em abastecer a vida, sustentar a vida, produzir o satisfatório para as necessidades vitais. Nesse sentido, temos diversos exemplos atuais que mostram como a necroeconomia existe: a Vale, por exemplo, é uma empresa que provocou a morte de mais de 200 pessoas em 2019, e continua tendo valores exorbitantes de lucro em suas atividades. É importante repetir a pergunta feita pelas pessoas que perderam alguém nesse processo: quanto vale a vida? 

Lei.A – Você também associa muito a guerra ao modelo de mineração que temos hoje. Qual é essa relação? 

Com o mercantilismo surge uma sociedade moldada pela cobiça, na qual o progresso humano é sustentado pelo enriquecimento. Quem tem mais dinheiro é quem tem mais sucesso, é o lugar mais desenvolvido. E aí surge também a guerra como método de conquista, conservação e acumulação de riqueza. As sociedades entram em um processo de concentração e monopólio do uso da força física para o controle da violência militar. A violência militar, ou seja, as guerras, requisitaram muitos minerais. O rei de Portugal definia como prioridade a extração de prata, porque a prata era o que abastecia os exércitos. Os exércitos foram as primeiras filiais de aparato estatal que se profissionalizaram. Os primeiros trabalhadores do Estado foram soldados, os profissionais da guerra. Então é muito importante entender esse início, que a prata era a prioridade do Estado porque por meio dessa aliança corporativa entre público e privado era possível extrair valores rentáveis que financiavam a guerra. Dessa forma, o comércio e a guerra passaram a ser os dois elementos fundamentais desse elemento de estruturação, desse novo padrão de ordem mundial, porque se estabeleceu uma dinâmica onde a conquista e a expansão de fronteiras com a mercantilização passaram a ser possíveis por meio da expansão desses dois elementos. E, hoje em dia, no auge do século XXI, o que vemos é que essa matriz do poder mundial segue tendo essa base mineral. O sistema financeiro internacional, para além de todas as criptomoedas e valores abstratos, segue dependendo do ouro como referência. Quando vivenciamos uma crise financeira, todo mundo volta pro ouro como valor de refúgio. Por outro lado, o que temos é o aparato militar industrial, que é a coluna vertebral no qual se fundou o Estado. Então, hoje em dia essa matriz mineral do poder segue sustentada, e por isso dizemos que não há modernidade sem guerra e sem esse processo de mineração colonial. 

Lei.A – No Brasil, um dos argumentos mais usados é o da dependência que o país tem do minério para sua economia. Se trata de uma atividade de interesse público? 

Muita gente define a mineração como utilidade pública, como interesse público.  Mas o que significa isso? Significa que as empresas têm a prioridade de destruir territórios, extrair  a riqueza do subsolo, deslocando toda a riqueza sustentável que se produz em um solo. Essa ficção de que a mineração é de interesse público segue sendo uma herança colonial. Ela, na verdade, era de interesse prioritário para os reis, e hoje segue sendo de interesse prioritário para o Estado e suas corporações, porque isso joga um papel claro nessas duas matrizes de poder: o valor financeiro e a força da guerra. E o mais perigoso é naturalizar sua presença e forma de atuação. O que vemos em muitos lugares, como em Minas Gerais, é uma ocupação cada vez mais frequente das mineradoras nos espaços, e uma sociedade que se acostumou com a forma como ela opera. Então, as mortes causadas por essa forma de operar passam a ser naturalizadas, as violências passam a não causar tanta indignação, porque elas acontecem de forma devagar e  são tão frequentes que quase não são percebidas. Quanta gente nem sabia quantas barragens tinha por perto antes da primeira delas romper? Se acostumar com a barbárie é a própria mineralização do pensamento. 

Lei.A – Como ressignificar isto? 

A gente vive na terra, e a terra é feita de minérios.  Nosso corpo é feito de minério, então quando dizem que somos minerodependentes, é claro que somos. Toda a sociedade depende dos minérios porque vivemos na terra e a terra é mineral. A gente faz mineração ao viver, porque estamos processando minério o tempo todo: cálcio, ferro, fósforo… não é a mineração, e sim o tipo de mineração que estamos fazendo. Aqui estamos falando de uma mineração colonial capitalista, que é minerodependente. Ou seja, temos aqui um metabolismo de funcionamento de mercantilização que implica em um processo incessante de extrair recursos vivos, de extrair recursos da terra para mercantilizá-los e fazer isso o mais rápido possível, passando por cima de vidas. Vivemos esse processo de aceleração, essa dinâmica que implica um ciclo de vida dos produtos cada vez mais curto. E isso supõe, também, que os produtos que dizemos “bens duráveis” tenham um ciclo de vida cada vez menor. Um carro que antes era feito para durar 50 anos, agora dura dez. Isso, que se chama obsolescência programada, tem a ver não com uma necessidade humana, e sim com uma necessidade de valorização financeira. Então a demanda cada vez mais crescente e incessante de minerais tem a ver com um metabolismo econômico que faz com que a roda de produção, consumo e descarte seja cada vez mais veloz. Isso é um problema. O desenvolvimento tecnológico é outra questão. Obviamente, como fazemos parte de uma trama de ações sociais, nossa forma de fazer está condicionada com a forma de fazer que uma sociedade determina. Ou seja, necessitamos de internet, de computador, de celular, porque não temos outra forma de operar, mas a questão é: as tecnologias que temos agora são necessariamente as mais eficientes? São as mais eficientes em termos produtivos e integrais? Quais foram os critérios que nos fizeram optar por uma tecnologia, e não por outra? Quem decidiu qual o curso da evolução tecnológica que seguimos atualmente? Ou seja, tem a ver com desnaturalizar esse processo de evolução tecnológica, porque o processo de concentração do mundo, essa oligarquização do mundo, faz com que muito poucos tenham o poder de decidir sobre qual tecnologia será usada, e isso tem muito a ver com essa trajetória de modernidade capitalista que falamos. É interessante tomar nota de que todos os estudos críticos mostram que a tecnologia moderna é algo que nasce nos campos de batalha: primeiro foi uma prioridade geopolítica estratégica de países que estão competindo pela supremacia, pelo controle deste sistema internacional de nações. Isso nasce no século XVI, entre Espanha e Portugal, e depois Holanda, Inglaterra etc. Muitas vezes as tecnologias foram escolhidas porque tinham maior capacidade de destruição, ou porque tinham a maior capacidade de controle de força de trabalho, ou porque eram baratas. Nunca foi considerado o que precisaria ser destruído em prol delas.  As tecnologias da mineração concentram tudo isso: a capacidade de controlar a força de trabalho, a supremacia e o controle oligárquico estatal e corporativo das decisões de vida sobre as populações, e a destruição dos valores vitais. O que é necessário destruir para dar conta do que a mineração estabelece como essencial para se viver não é levado em conta em momento algum. 


Lei.A -Como desenvolver uma leitura crítica sobre esse contexto? 

É importante levar em conta as proporções, as quantidades, o ritmo dos processos, o lucro envolvido, o motivo de minerar algo. A grande máquina extrativa, que surgiu a partir do século XVI, tinha como objetivo extrair valor de câmbio sem se importar com a destruição dos meios de vida, das fontes de vida que isso envolve. Extrair valor de câmbio, e não usar esses minerais para necessidades vitais, mas sim para uma maior renda imediata. Precisamos entender as características do modelo que temos hoje: um setor fortemente oligárquico, composto por um grupo muito pequeno, o que impede as decisões comuns. São muito poucas mineradoras. Toda essa cadeia de valor de minerais, desde a extração até o processamento e sua disposição, está controlada por seletas empresas internacionais que fazem operações intrafirmas. Também todas reforçam a Divisão Internacional do Trabalho, que é a fratura colonial. A América Latina passou a ter as Zonas de Sacrifício, que são as áreas onde as minas são instaladas para extrair o mineral, destinadas a viverem uma série de danos socioambientais. E esse mineral sim tem tido um caminho também oligárquico em dois sentidos: tanto no sentido que são poucas empresas com muito poder aquisitivo – inclusive mais poder do que muitos Estados -, mas também a orientação de que o objetivo não é satisfazer necessidades universais, e sim produzir bens de luxo. Se  a gente for analisar quais são as indústrias que mais precisam de minério, em primeiro lugar está a indústria armamentista, e novamente voltamos na questão da relação entre a mineração e as guerras. Essa é a indústria que mais minerais usam em quantidade e diversidade. E essa indústria é a que vai ditar quais minerais serão mais extraídos desde o século XVI até os dias de hoje. Em segundo lugar, temos os bens oligárquicos, que são os bens de luxo,  pensados por poucos e para poucos. É esse mundo que a mineração atual sustenta. 

Lei.A – Como mudar essa lógica? 

O problema não é a mineração, e sim a mineração capitalista, que está organizada dessa forma, uma mineração transnacional. Isso significa que uns territórios vão prover os minerais de outros, sem se responsabilizar com as consequências destes atos. Os minerais que são tirados daqui de Minas Gerais, para onde vão? Até 2017, mais ou menos, eram retirados do Brasil 400 milhões de toneladas de ferro por ano. Dessa quantidade, 390 milhões foram exportados. Isso porque o Brasil é um país industrializado. Então, para pensar uma mineração sustentável é preciso pensar quais são os minerais que a gente precisa, quanto, para que e para quem. Aí diríamos quais são as quantidades, de que forma se extraem, para que tipo de uso, quais são os usos legítimos. São perguntas importantes de serem feitas por quem vive em um lugar onde a mineração está em toda parte. É preciso desacelerar esse metabolismo de produção de bens, colocando como prioridade o abastecimento das necessidades que são vitais. E isso, na lógica capitalista, é impensável. Mas a  lógica da rentabilidade se expandindo pelo mundo está destruindo a habitabilidade da terra. Quando colocamos o valor de câmbio e de extração de riqueza financeira acima dos valores de uso, quer dizer que deixamos de lado a alimentação das pessoas, os ciclos de água, a saúde do ar, e vemos que isso está sendo afetado em nível planetário. Temos a era do antropoceno, que é uma temporada marcada por esses perigos criados pelo processo de industrialização, de contaminação. Então a gente não tem outra alternativa a não ser mudar, repensar formas de viver. Esse modelo de mineração desenvolveu a indústria nuclear. E por mais que a radioatividade tenha possibilitado a existência dos radioisótopos, usados na medicina, é muito importante que a gente não se esqueça que o uso de energia nuclear foi orientado para a guerra. Os minerais são basicamente não renováveis. Estamos falando de um tempo geológico dos minerais, que são muito longos. Os ciclos deles são de milhões de anos. O que acontece se a gente tira da terra em um ano 400 milhões de toneladas de minerais de um território? Porque esse gigantismo? Por que caminhões cada vez maiores? Por que ferrodutos cada vez maiores? Hoje se destroem bacias hidrográficas inteiras para conseguir extrair mais minério. É só olhar a paisagem de Minas Gerais para ver que isso é verdade.  Não são somente nascentes de água, cursos de água, mas também culturas que vivem de outras maneiras, que são destruídas. A gente fetichiza muito essa dinâmica do consumo, mas é importante lembrar que não somos todos que alcançamos esses altos padrões, e por isso os chamo de oligárquicos. Esse mundo é de poucos, para poucos, e privilegia poucos em cima de um sacrifício de uma ampla maioria. São territórios sacrificados, não importa as populações que vivem ali, os agricultores, os indígenas e quilombolas. Há muito cinismo e crueldade nessa colonialidade de pensamento. 

Lei.a – A onda de governos progressistas na América Latina, nos últimos anos, não conseguiu alterar esse modelo.  Por que? 

Os ciclos dos governos progressistas, sobretudo o primeiro, que foi marcado pelo Consenso das Commodities e o Consenso de Beijing (Pequim), mostra a decadência do pensamento crítico latinoamericano e a renúncia da esquerda latinoamericana.

Isso porque se pode dizer que a origem do pensamento crítico latinoamericano foi justamente a crítica ao extrativismo, que é a extração de recursos do meio natural para a sua posterior utilização pelos seres humanos. Nesse sentido, defendia-se que o extrativismo não é somente um problema ambiental, mas sim um padrão de poder socioterritorial, onde uma classe se elege como uma elite oligárquica a partir de uma apropriação dos territórios onde estão as commodities primárias, como por exemplo os minerais. Nós, da América Latina, fomos os primeiros, desde o século XIX, a fornecer aos outros países o café, a prata, o outro, a cana de açúcar, o cacau, a lã…  E hoje continuamos sendo. Quando nascem as Ciências Sociais latinoamericanas, na década de 1950, vem à tona a reflexão sobre como esses regimes oligárquicos têm problemas com a democracia, com a igualdade social, mas nesse tempo ainda não existia o aprofundamento de como essa dinâmica também tinha a ver com a  sustentabilidade ambiental. Então viram que o problema que chamavam de extrativismo era um padrão de poder que significava uma estrutura de classe, fortemente organizada e desigual, onde há uma elite que tem um padrão de consumo excludente e exclusivo. Essa concentração de poder econômico não pode deixar de ter consequências nos termos de organização política. Ou seja, nossos Estados têm sido “aliados” ou “dependentes” da elite do agronegócio, da elite do capital minerador, de todo esse capital extrativo. Ele tem mantido um forte peso, de aliança subordinada, ao aparato do Estado. Entendendo todo esse contexto fica mais fácil compreender o grande fracasso dos governos progressistas em mostrar essa colonialidade da lógica de desenvolvimento adotada. Não podemos desenvolver se, nessa lógica, reproduzimos os padrões de vida e os níveis de consumo das sociedades imperiais, as sociedades mal chamadas avançadas, desenvolvidas. Eu vejo como esses governos insistiram em ser cegos em relação à natureza. Sabemos, há muitas décadas, que o extrativismo não é uma alternativa válida para o desenvolvimento. Esse modelo tem consequências graves em matéria de classe social, gera uma distribuição de renda que tende à polarização social, corrobora com a existência das elites e traz pouco retorno. 

Lei.A – Qual seria um caminho possível? 
Estamos sempre pensando em trocar o carro, o celular, essas coisas, e nunca pensamos quantas vidas são sacrificadas para fazer aquilo acontecer na velocidade que o capitalismo impõe. Por outro lado, não é algo que depende de decisões individuais, e isso é um problema. É necessário uma força coletiva. Eu não vou mudar o mundo se eu sigo um padrão de vida sustentável sozinho. Só isso não alcança. Mas, primeiro, temos que ter essa mudança do sentido da vida, de aprender com os povos que vivem da terra. A luta anti-extrativista vem a colocar um caminho radical. Dizer não à exploração é urgente. Temos aqui em Minas o exemplo da Serra do Curral. É um projeto que não pode acontecer, e a sociedade tem que estar pronta para agir por ele. Dizer “não” de forma radical é colocar a máquina do poder em um lugar que não é de negociação. A radicalidade tem muita potência, no sentido de que mostra que existem valores maiores do que os financeiros e que eles não são negociáveis. Não há o que justifique a destruição. Muitas comunidades em toda a América Latina começaram a fazer plebiscitos, demandar consultas populares para dizer se o projeto vai ou não vai ser autorizado, e isso tem gerado resultados inspiradores, como o caso de Esquel, na Argentina, que vem há anos impedindo a instalação de um megaempreendimento de mineração. Por meio de mobilização popular estão reclamando que o povo, por meio de um outro direito garantido, que é o da participação, decida se esse projeto deve ou não seguir em frente. Então essa é uma luta pela democratização. Quem tem direito de decidir sobre um território? São as empresas? É o Estado? São os funcionários? Ou somos nós, que vivemos aqui? Tem um processo de democratização que implica em dizer: bom, a população que vive aqui, que tem seu passado, seu presente e quer defender seu futuro. Por conta disso, não temos motivos para negociar seu território com as empresas. Também acho que é necessário alimentar e colaborar para uma outra potência, que é de uma mudança na forma de pensar sobre a Terra. E isso implica a convergência dos saberes pré-modernos, pré-científicos e da nossa cultura originária indigena, mas também com o mais avançado da ciência ocidental contemporânea. Porque, hoje, de todas as formas, nós sabemos que a Terra é um ser vivo, é um super organismo vivo, um planeta convivente. E vida é o que emerge das relações na biodiversidade, nos vínculos de reciprocidade, complementaridade. Estamos falando de algo que não é poético e romântico, somente. Estamos falando de cadeias tróficas, da respiração que acontece porque as plantas mudam o dióxido de carbono no oxigênio. Estamos falando que a gente come porque a abelha poliniza os cultivos que nos nutrem. Então, saber e nos sentir parte da Terra é uma revolução sobre a nossa relação com a natureza que precisamos viver para sobreviver ao que está acontecendo aqui e agora. Não se trata somente de cuidar da água e dos passarinhos, em sentido romântico, desse ecologismo nórdico, mas no sentido de pensarmos em como somos minerodependentes, hidrodependentes e dependentes de todas as espécies de vida. E penso que essa transformação epistemológica implica em uma aliança também em termos de forças políticas. Ela só é possível se existe uma maior integração com os povos originários, camponeses, quilombolas, mas também com populações de pequenas comunidades urbanas.

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