Barragem de Fundão: livro revela trama da maior tragédia socioambiental do mundo

“Tragédia em Mariana”, da jornalista Cristina Serra, revela omissões, sonegação de informações, licenciamentos em tempo recorde e outros fatores que culminaram no desastre que completa três anos

Desde 2016, deputados mineiros se negam a seguir recomendações da ONU e do Ministério Público para endurecer legislação sobre rejeitos da mineração

Dia 5 de novembro de 2018 completam-se três anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, que matou, no primeiro dia, 19 pessoas e devastou o distrito de Bento Rodrigues, além de destruir o ecossistema do rio Doce. Desde então, o Ministério Público de Minas Gerais e 60.000 pessoas – que assinaram o documento – tentam aprovar na Assembleia Legislativa de Minas Gerais um projeto de lei popularmente chamado de “Mar de Lama Nunca Mais”. Uma forma de tornar a legislação mais dura e moderna quanto ao destino dos rejeitos da mineração e suas possíveis ameaças ao meio ambiente e à vida. O projeto de iniciativa popular foi ignorado pelos deputados estaduais, anexado a outra proposta e teve muitas de suas determinações retiradas ou desvirtuadas (leia aqui).

Assim com o MPMG, a ONU já recomendou que as barragens fossem substituídas por alternativas mais modernas e seguras de disposição de rejeitos (leia aqui). O deputado João Vítor Xavier (PSDB) até tentou apresentar um substitutivo que previa as mais importantes recomendações tanto do organismo internacional quanto do projeto popular “Mar de Lama Nunca Mais”). Porém, os parlamentares da Comissão de Minas e Energia, muitos deles com doações de mineradoras em suas campanhas, decidiram por vetar o substitutivo tão exaltando pelos órgão de segurança, ambientalistas e poderes de defesa da vida (leia aqui).

Atualmente, um projeto de lei (3676) veemente criticado por ambientalistas e que ignora as orientações do Ministério Público e da ONU está para ser votado na Assembleia Legislativa.

Sobre essa triste “manobra legislativa”, nós do Lei.A conversamos com a jornalista Cristina Serra, que lança essa semana o livro Tragédia em Mariana. “A barragem já nasceu ‘torta’, quer dizer, errada, desde o processo de licenciamento pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais e pelo Copam (Conselho Estadual de Política Ambiental). Várias condicionantes, ou exigências, do processo de licenciamento foram simplesmente ignoradas. E, mesmo assim, a Samarco obteve todas as licenças para implantar, construir e operar a barragem”, revela a autora.

Cristina fez a cobertura de toda a tragédia da barragem de Fundão e durante quase três anos, teve acesso a inúmeros documentos e testemunhos. Seu livro traz detalhes inéditos e estarrecedores sobre a  construção da barragem de Fundão, que ao romper no dia 5 de novembro de 2015, deu a Minas Gerais o lugar na história como o território onde ocorreu o maior desastre socioambiental do mundo relacionado a barragens de mineração.

 

 Três anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. O que seu livro traz sobre a memória que ficou e o esquecimento que se gerou nesse tempo?

 O aspecto da memória é muito importante no livro. Meu objetivo inicial era contar as histórias dos 19 mortos no desastre. Queria mostrar a dimensão humana por trás da estatística. Quem eram, quais seus projetos de vida, tinham filhos, trabalhavam há muito tempo na empresa e/ou na mineração? Procurei as famílias dos 19, mas só consegui falar com 12. Por variados motivos, sete viúvas de trabalhadores não quiseram dar seus depoimentos e respeitei o seu silêncio. Outra memória importante é a história do povoado de Bento Rodrigues, cujas origens remontam ao tempo da escravidão e que foi o mais devastado dos três povoados mais atingidos. Diria que um terceiro aspecto relevante da memória desse desastre foi contar a história da barragem que rompeu e provocou tantos danos humanos, sociais e ambientais. O livro mostra que a barragem já nasceu “torta”, quer dizer, errada, desde o processo de licenciamento pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais e pelo Copam. Várias condicionantes, ou exigências, do processo de licenciamento foram simplesmente ignoradas. E, mesmo assim, a Samarco obteve todas as licenças para implantar, construir e operar a barragem.

 

Há dois anos tramita na Assembleia Legislativa de MG um projeto de lei que visa criar regras para construção e fiscalização de novas barragens. O texto atual da lei, formulada pelos deputados estaduais, é muito criticado por ambientalistas por ser “brando demais”. Além disso, em relatório recente da ONU, após visita à região de Mariana, a entidade recomendou que as barragens de rejeito da mineração no Brasil fossem substituídas por tecnologias mais modernas e seguras, assim como ocorre em quase todo o mundo. O Ministério Público de MG e alguns deputados tentaram incluir essa determinação, criando um substitutivo ao projeto. Porém, os parlamentares integrantes da Comissão de Minas e Energia derrubaram o substitutivo que incluía a determinação da ONU e deram seguimento ao projeto de lei original. A alegação foi de que isso “inviabilizaria a mineração em Minas Gerais”. Como você encara esse argumento dos deputados?

Os legisladores mineiros, me parece, não perceberam – ou não querem perceber – a gravidade do assunto e os riscos para as populações que vivem próximas a essas estruturas. O desastre de Fundão é considerado o maior do mundo no setor de barragens de mineração. Portanto, deveria servir de alerta e de estímulo para que a legislação fosse aperfeiçoada no sentido de minorar os riscos para as pessoas e para o meio ambiente. Ao que tudo indica, eles estão caminhando no sentido contrário e o fator econômico vai preponderar. É claro que a atividade econômica de mineração deve ter condições de existir, gerar empregos e desenvolvimento. Mas o fator segurança tem que estar em primeiro lugar: segurança dos trabalhadores, das comunidades próximas, do patrimônio histórico e do meio ambiente.  Hoje em dia, há tecnologias que permitem uma conciliação de todos esses aspectos, sem falar na ética e no respeito à vida, que deve – ou deveria – nortear qualquer decisão empresarial. Acho que uma explicação para a atitude dos parlamentares pode estar no fato de que muitos deles receberam doações de campanha de empresas do setor de mineração, quando foram eleitos, em 2014. Na época, o financiamento empresarial de campanha era permitido por lei. Seus compromissos parecem ser maiores com quem os financiou do que com a população mineira. É a velha fábula da raposa tomando conta do galinheiro.

 

Minas Gerais possui atualmente mais de 350 barragens de rejeitos, sendo que pelo 50 não têm estabilidade garantida. Numa época em que o cidadão comum é bombardeado a todo momento com dezenas de informações que se perdem rapidamente ou são manipuladas nas redes, como utilizar o Jornalismo e a Comunicação para que ele se aproprie do tema, tenha uma atuação efetiva para monitorar esses empreendimentos e possa, assim, lutar pela segurança da própria família?

 

No processo de apuração do livro, me dei conta que muitos moradores de Bento Rodrigues, que ficava a cerca de seis quilômetros da barragem, não tinham ideia do que é uma barragem de mineração e dos riscos decorrentes dessa atividade, estando ela tão próxima de uma comunidade. Ao conversar com os moradores sobre a relação deles com a empresa, percebi também que a empresa os manteve na ignorância sobre todos esses riscos. O livro relata, inclusive, um fato inédito que foi uma pesquisa feita com os moradores com vistas à instalação da barragem de Mirandinha, sem que os pesquisadores esclarecessem aos moradores qual era o verdadeiro motivo da pesquisa, a pedido da Samarco. Mirandinha, se tivesse sido instalada, ficaria a menos de dois quilômetros de Bento Rodrigues. Portanto, a empresa falava em “transparência” da boca pra fora. Acho que, em primeiro lugar, o poder público tem que cobrar essa transparência. Mas sabemos como as instâncias de poder no Brasil são omissas e falhas. Então, não vejo outra alternativa a não ser as próprias comunidades se organizarem, serem vigilantes e cobrarem transparência. O jornalismo também tem um papel a cumprir. Foi isso, aliás, que também me levou a escrever o livro. Percebi que tinha uma grande reportagem nas mãos, mas que não caberia no dia a dia da imprensa. Era preciso ter tempo e fôlego para reunir todas essas informações. Meu objetivo era fazer um livro-documento sobre o desastre para que a tragédia de Mariana e suas lições não sejam esquecidas.

 

 

Alguns fatos. 1) Há dois anos a batalha em cima do projeto de lei para novas barragens de rejeitos é travada na Assembleia Legislativa de MG, ainda assim, a maior parte da população sequer sabe da existência deste debate. 2) Os deputados mineiros chegaram a aprovar uma lei, em resposta ao rompimento da barragem de Fundão, que acabou por desproteger uma unidade de conservação de proteção integral em beneficio de uma mineradora cujas barragens de rejeito sequer têm sua estabilidade garantida. Em que pese a reação de parte da sociedade civil, nada aconteceu. Onde a comunicação está falhando? Como, afinal, furar esse bloqueio? Qual a capacidade (ou não) do jornalismo dos grandes meios de comunicação para lidar com problemas tão complexos como a afetação por barragens hoje no estado?

 O jornalismo não é capaz de dar conta de tudo. Particularmente, o jornalismo brasileiro passa por uma crise muito grande. Toda semana vemos demissões nas redações. E também, muitas vezes, o jornalismo não percebe a gravidade de certos assuntos. Acho que a mídia brasileira é muito boa de cobrir o factual. Por exemplo, quando houve o desastre, toda a imprensa correu para mostrar o que aconteceu, a situação dos atingidos, a lama no rio Doce etc. Mas vi pouquíssimas reportagens sobre o contexto, o marco institucional, as causas mais profundas que levaram a esse desastre. É dificílimo furar esse bloqueio. Mas acho que as mídias digitais podem ser um caminho, sobretudo as especializadas. Para cobrir um assunto complexo como a mineração o jornalista tem que se especializar.

 

Nós do Lei.A somos um observatório de leis ambientais. Entre as nossas ações está a de sermos vigilantes sobre possíveis retrocessos e avanços na legislação ambiental em Minas Gerais. Nessa direção, para você, qual a “responsabilidade” da legislação e dos legisladores quanto a eventos como o ocorrido em Mariana?

A responsabilidade deles é enorme. O caso de Mariana revelou uma série de falhas e omissões na legislação. Por exemplo: a lei não obrigava que as empresas implantassem sirenes nos povoados próximos às barragens. O rompimento de Fundão só não teve mais vítimas porque uma moça, Paula Alves,  que estava na zona rural entre a barragem e Bento Rodrigues, ao ver a lama, pegou sua moto e correu para o povoado e só parou de rodar quando a gasolina acabou. Ela foi a sirene que a Samarco não instalou. Depois do desastre, a lei mudou e hoje a sirene é exigida. Nesse caso, é uma lei federal. Mas, por que a lei estadual já não exigia antes, já que Minas é um estado minerador? Volto ao provérbio popular: botaram o cadeado depois da porta arrombada.

No Lei.A defendemos que o nosso papel social é usar a Comunicação como ferramenta para traduzir discussões técnicas para a linguagem do cidadão comum para que, aí sim, ele possa “conhecer, monitorar e agir”. Como você analisa o posicionamento dos órgãos públicos, da academia, da pesquisa e da própria imprensa, sob o viés da Comunicação nas interface com a população em geral?

No caso de Fundão, não tenho dúvidas de que os órgãos públicos foram omissos. A empresa fazia o que bem entendia. A investigação do Ministério Público Federal não deixa dúvidas quanto a isso. Acho que os  demais setores que você menciona tem a obrigação de traduzir  aqueles assuntos que dizem respeito diretamente à vida das pessoas e que, muitas vezes, elas não entendem direito. No caso das barragens, é uma questão de vida ou morte, literalmente, como vimos em Fundão. Então, esse trabalho, como você diz, de monitorar as leis e traduzi-las para que todos entendam o que realmente significam e o impacto que terão na vida das pessoas é fundamental. Informação salva vidas. Tenho certeza disso.

 

Diante de tudo o que já se escreveu sobre o tema e do grande poder financeiro e político das mineradoras no estado, o que seu livro pode trazer para ajudar a melhorar a vida das pessoas?

 O livro traz muitas informações inéditas. Além do Projeto Mirandinha, já mencionado, trago toda a história do licenciamento da barragem, com falhas e omissões gravíssimas. O licenciamento foi excepcionalmente rápido, pouco mais de um ano, o que é muito pouco para uma estrutura dessa complexidade. Além disso, o livro mostra claramente que a mineradora tinha plena ciência dos riscos da barragem. Trago os relatórios inéditos de um consultor canadense que alertou para uma série de falhas na gerência da barragem. Em conjunto, todas essas informações mostram que a barragem de Fundão era uma tragédia anunciada. A empresa cometeu muitos erros e o poder público foi incapaz de exercer o seu papel de fiscalização. Nesse sentido, acho que o livro é um alerta muito contundente de que novas tragédias como essa podem acontecer.

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