ARTIGO: O relato de Florzinha, uma guerreira catadora

Cleide Maria Santos Vieira, a Florzinha, escreveu um depoimento para o Lei.A falando sobre sua profissão, muitas vezes invisível, e sobre a potência das cooperativas que atuam em Minas Gerais

“Quando for jogar algo “fora”, lembre-se: não existe fora”. Gosto de usar uma camiseta que tenho com essa frase estampada, porque ela resume meu trabalho como catadora e mobilizadora pela sustentabilidade. Visto quando vou falar em público sobre a nossa atuação diária nas ruas e nos galpões da cidade, sobre a importância das nossas cooperativas e sobre como é essencial que cada pessoa, em sua própria casa, assuma sua responsabilidade com os resíduos que gera. 

Eu me aproximei do universo da catação e da mobilização pela sustentabilidade em 2010, através de uma pessoa próxima que me convidou a conhecer o trabalho da Cooperativa de Materiais Recicláveis da Pampulha (Comarp), em Belo Horizonte. Depois de um tempo,  atuei na Rede Cataunidos em parceria com o Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável (INSEA). Tudo isso me deu a chance de ter mais experiência na área da sustentabilidade e de me aproximar de outras redes. Desse jeito,  acabei sendo convidada para ser uma das mobilizadoras da Cooperativa Central Rede Solidária dos Trabalhadores de Materiais Recicláveis de Minas Gerais (Redesol MG) e também para integrar o grupo Lixo Zero BH. Agradeço muito por essas oportunidades, porque me deu a chance de conhecer outras cooperativas, outras demandas, outras situações e outras histórias. 

Tudo isso agregou na minha caminhada porque me possibilitou trocar ideias e experiências com tanta gente. Hoje em dia, nosso trabalho não se limita a separar, organizar e prezar pelos resíduos que chegam, mas também nos articulamos de outros jeitos: recebemos escolas e empresas no nosso espaço para falar sobre reciclagem; participamos de eventos sobre o tema; fazemos  bazares com roupas boas que são descartadas; artesanato; parcerias e muitas outras coisas para manter nossa cooperativa viva. 

Para quem não conhece uma cooperativa de materiais recicláveis, eu posso contar um pouco mais. Esses lugares são os galpões para onde são encaminhados os materiais com potencial de reaproveitamento recolhidos ao longo de toda a cidade pelo serviço de coleta seletiva. Ali, tudo será separado corretamente de acordo com a composição e com a capacidade de reaproveitamento. Além disso, as cooperativas de catadores geram empregos e dão a oportunidade de que os cooperados tenham direitos trabalhistas como todo cidadão deve ter. É um espaço onde exercitamos diariamente a cidadania e a consciência ambiental e trabalhamos por meio da economia solidária popular. Coletivamente, tiramos muita gente do desemprego ou da posição de informalidade para estarem em um lugar seguro e reconhecido. O nosso trabalho garante o reaproveitamento de toneladas de resíduos gerados pelos cidadãos. Essa mobilização também é super importante para a luta de políticas públicas voltadas para a reciclagem. Sem organização nada vai para a frente. 

E o universo da catação não termina nas cooperativas. Existem também os trabalhadores informais, aqueles que vão de porta em porta buscar materiais que possam ser vendidos em troca de alguma renda. Existem várias cooperativas que também agregam esses trabalhadores, mas também há os que vendem em ferros-velhos por preços irrisórios e injustos. Esses trabalhadores, muitos deles moradores de rua, são exploradíssimos. Eles precisam ser vistos e reconhecidos, porque é deles também o mérito de tudo que é reciclado na cidade. E fazem isso com as próprias mãos, em um trabalho suado,  inseguro e pouco valorizado. 

Como todo brasileiro, vivemos uma situação delicada com a pandemia. As cooperativas de Belo Horizonte decidiram, a partir de uma assembleia, paralisar os serviços desde o dia 21 de março, considerando que vários de nós pegamos ônibus e nos colocamos em risco para chegar até o trabalho. Com a coleta seletiva suspensa, também parou de chegar material nos nossos galpões. O auxílio disponibilizado pelo governo não chega para todos. Centenas de catadores não receberam nem a primeira parcela ainda. Mas aqui ninguém fica parado. Começamos a pensar em alternativas e a acionar nossos parceiros – Instituto Unimed, Lixo Zero BH, Movimento Nacional de Catadores, e outras ONGs. Surgiram campanhas e apoio financeiros de cidadãos que nos reconhecem. Começamos a nos mobilizar, pensar em alternativas de produção de artesanatos e máscaras de nossas próprias casas, e vamos levando até quando pudermos voltar à ativa. Se não podemos contar com o poder público, vamos dando o nosso jeito, contando com a força das nossas próprias mãos e com a solidariedade de quem nos enxerga. 

Nós, catadoras e catadores, somos extremamente importantes, porque ajudamos a natureza a respirar. Em uma tonelada de papelão que reciclamos, sabemos que são vinte árvores que deixaram de ser cortadas no mundo. E para gente pensar no ciclo de uma árvore até a vida adulta dela, quanto tempo leva? Uma tonelada de plástico são dez barris de petróleo que economizamos. Você já parou para pensar hoje no tanto de alumínio e bauxita que poupamos da natureza ao reaproveitarmos todo esse plástico? 

Valorizar a reciclagem e fortalecer a coleta seletiva é uma forma de agir diretamente por um mundo melhor. Lutar por políticas públicas de resíduos sólidos é também lutar por uma água melhor, uma terra mais fértil e um ar menos poluído para nossos descendentes. Está tudo interligado. Nós, catadores e catadoras do Brasil, formais e informais, estamos aqui para lembrar a sociedade sobre o ciclo da vida humana e da natureza. Nós, quando nos organizamos em cooperativas, estamos gerando trabalho e renda, estamos fazendo existir a inclusão social e estamos garantindo o retorno desses resíduos para a cadeia produtiva da reciclagem. 

Muita gente me pergunta o que o cidadão pode fazer para valorizar o trabalho do catador. Separar o material reciclável é o mais óbvio, e está ao alcance de todos nós. Se o material pode ser reaproveitado, lave, seque e procure saber o dia da coleta seletiva no seu bairro. É só ligar para a prefeitura e perguntar (no caso de Belo Horizonte, o telefone é o 156). Você pode colocar na porta da sua casa as sacolas com os resíduos separados, para disponibilizá-los para os catadores informais. Nesse caso, é importante ter cuidados e não deixar nenhum material cortante que possa ferir quem for mexer. Caso não tenha coleta seletiva onde você mora, uma alternativa é levar até um ponto de entrega voluntária, os chamados “pontos verdes”. Assim como saímos de casa para comprar coisas, podemos sair de casa para levar o material reciclável para ser reaproveitado. Isso se chama responsabilidade social e ambiental. 

Outro caminho importante é o da educação ambiental. Além de separar o seu material reciclável, se você trabalha em uma escola ou em uma empresa, já pensou em levar esse tema para debate nesses espaços? Muitas cooperativas recebem grupos em seus galpões para explicar de um jeito bem educativo todo o processo de reciclagem. Quem vê com os próprios olhos não esquece mais. Eu posso garantir. Também existem movimentos em todo o país que propõem o trabalho de conscientização ambiental, como o Movimento Lixo Zero e o Observatório  da Reciclagem Inclusiva e SolidáriaORIS. Essas iniciativas organizadas por pessoas da área promovem encontros valiosos onde o tema é discutido a partir de ações que podem ser levadas para nossas casas, lojas, empresas, escolas, museus e qualquer outro espaço que exista na cidade. 

Eu sonho com o dia em que todas as nossas cidades poderão contar com a coleta seletiva e com o trabalho das cooperativas. Sonho com o dia em que todos os catadores e catadoras serão cooperados, dignos de direitos trabalhistas, segurança e reconhecimento. 

Viva essa profissão tão importante para o Brasil! 

 

Cleide Maria Santos Vieira (Florzinha )
Catadora de recicláveis, mobilizadora social e artesã,  atua há dez anos com a gestão e o reaproveitamento de resíduos sólidos
em Belo Horizonte e na Região Metropolitana. É membro da Comarp, da Redesol e do movimento Lixo Zero BH.

 

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