Por Gladston Figueiredo (*)
Desde cinco de novembro de 2015, quando a barragem de Fundão rompeu despejando cerca de cinquenta milhões de metros cúbicos de rejeito de minério sobre tudo o que estava em seu caminho, as pessoas que foram atingidas por esse desastre, tiveram seus projetos de vida destruídos e vêm lutando por justiça.
Trabalhando em projeto de Assessoria Técnica conquistado pelos atingidos do município de Mariana, pude acompanhar de perto esse processo de luta que é recheado de muito sofrimento, adoecimento, mas que também tem suas vitórias e o constante reinventar da vida e da esperança em ter de volta tudo que foi perdido.
A Assessoria Técnica, que é desenvolvida pelo Regional Minas Gerais da Cáritas Brasileira, visa garantir a participação dos atingidos, de forma muito bem informada, com dados e elementos decisórios, nas discussões relativas ao processo de reparação integral dos danos sofridos. Isso se dá através de uma proposta transdisciplinar que envolve profissionais das mais diversas áreas do conhecimento humano, tais como direito, engenharia civil, psicologia, ciências socias, arquitetura, geografia etc.
Essa participação qualificada é fundamental para garantia de que a reparação seja realmente uma reconstrução dos modos de vida com dignidade e ampla satisfação dos anseios daqueles e daquelas que tiveram suas vidas completamente alteradas. O processo de reparação integral tem a ver com reconstrução dos modos e projetos de vida de cada pessoa atingida pelo rompimento da barragem de Fundão e o trabalho desenvolvido pela Assessoria Técnica dialoga com o cuidado dedicado a cada uma dessas vidas, buscando a coletivização das demandas e das conquistas.
Essa perspectiva de luta em conjunto, onde as pautas e demandas de cada um devem estar em sintonia com o todo, traz uma dinâmica muito rica de construção coletiva de bandeiras de luta. Nela, o pleito pela restituição do direito à moradia digna para uma família, por exemplo, passa, necessariamente, pela condição de que seu vizinho receba o mesmo.
Nesses cinco anos, os atingidos de Mariana têm alcançado, com muita persistência e garra, algumas conquistas importantes. Uma delas, que veio logo após o rompimento, foi a reformulação do cadastro apresentado pelas empresas causadoras do rompimento. O instrumento de coleta de informações proposto não possibilitava que as pessoas falassem de suas perdas e danos a contento. E, o que era bem mais grave, não tinha sido construído com a participação dos atingidos.
Nessa labuta de reformular o cadastro se inicia o processo de sistematização dos inúmeros e vastos danos materiais e imateriais sofridos. E, desde este ponto de vista, a participação da comunidade atingida é que traz a legitimidade de tudo o que foi construído. Só quem sofreu na pele todas os efeitos desse mar de lama pode, com propriedade, dar a justa medida do que foi danoso e de como deve ser feita a reparação.
À medida que os danos foram sendo sistematizados, com a construção coletiva proporcionada pelo assessoramento técnico, também se fez necessária a definição de metodologias científicas de valoração e a própria valoração de cada dano sofrido. E é isso que a Matriz de Danos (MD) dos atingidos traz. A Matriz, protocolada na Comarca de Mariana, em agosto de 2020, atribui valores aos danos apresentados por cada família no processo de cadastramento, que foram devidamente sistematizados, e com uma proposta de valoração construída a partir de metodologias consolidadas.
A construção da Matriz levou algum tempo, pois não foi uma tarefa exclusiva para a comunidade atingida e sua Assessoria. Ela foi se dando em paralelo com outras lutas que foram sendo travadas no território tais como o cadastramento de mais de mil famílias atingidas e a construção de diretrizes de reassentamento homologadas na justiça.
E a própria Matriz é uma conquista, pois as empresas, quando consultadas pelo juízo sobre a liberação de recurso bloqueado para custear a MD, negaram. E as empresas recorreram em segunda instância da decisão da juíza, que determinou o custeio da Matriz de Danos, em detrimento da não concordância das rés. A organização e pressão dos atingidos ajudaram a garantir a vitória na segunda instância, com a confirmação da decisão de liberação do valor destinado à MD.
Atualmente, os atingidos de Mariana, a partir da Matriz, não apenas podem comparar os valores das propostas de indenização oferecida pela Fundação Renova durante a negociação extrajudicial, como poderão usá-la na defesa por uma indenização justa, caso não entrem em acordo com relação à proposta indenizatória e se faça necessária a abertura de processo judicial. A Matriz foi incluída na Ação Civil Pública, impetrada pelo Ministério Público em Mariana e servirá de parâmetro para o juízo nas decisões.
Importante dizer que a MD dos atingidos traz propostas de valores muito mais consistentes e justos, em comparação ao que vem sendo oferecido como indenização pelas empresas mineradoras, através da Fundação Renova. Sendo assim, ter uma proposta de valoração mais justa, com argumentação científica sobre essa valoração, é muito importante para os atingidos, tanto na fase extrajudicial como judicial.
Nesse sentido, a Matriz de Danos construída em Mariana representa, ao mesmo tempo, o coroar de um processo de construção coletiva e a abertura de novo flanco de luta. Ela traz em si a importante marca de ter sido feita com a participação da comunidade atingida, a partir de suas demandas e relatos sobre as perdas e danos sofridos com o rompimento da barragem de Fundão. E a Matriz é uma ferramenta importante para que as famílias possam lutar por uma reparação integral e justa, ainda que essa reparação só venha depois de uma batalha judicial.
Não resta a menor dúvida de que as pessoas estão cansadas, depois de passados cinco anos de muitas batalhas. Há um quadro de exaustão e estudos demonstram o adoecimento mental das pessoas atingidas. São inúmeras reuniões que, cotidianamente, roubam dos atingidos o descanso e o convívio com a família. O contexto de pandemia, por certo, agudiza esse sofrimento, sobretudo por que a maioria deles não estão em suas casas, lugar do aconchego que ajuda a enfrentar o isolamento social. Neste contexto, a Matriz de Danos e as possibilidades de luta nela contidas são um respiro importante, que traz ânimo.
Mais do que uma lista de valoração de danos, foi construída uma Matriz de Luta e de Esperança. Feita a inúmeras mãos, que traz em si a convicção da necessidade da reparação integral como única resposta justa devida às famílias atingidas. Nós, da Assessoria Técnica, estamos confiantes e, ao lado do povo atingido, esperançosos de que, ainda que haja muito por se fazer, mais um importante passo foi dado.
Gladston Figueiredo é geógrafo e coordenador operacional do Projeto de Assessoria Técnica aos Atingidos de Mariana desenvolvido pela Cáritas Brasileira – Regional Minas Gerais
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Sou a Amanda Da Silva, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.