ARTIGO: Agroecologia na periferia, os quintais onde um novo urbano é cultivado

Vivian Tofanelli escreveu o artigo abaixo para o Lei.A sobre novas alternativas de produção de alimentos em áreas urbanas.

Comecei a conhecer os movimentos de luta pela moradia no primeiro ano de faculdade de psicologia, durante uma recepção de calouros que nos levou à ocupação Camilo Torres, em Belo Horizonte. Depois disso, fiz um estágio de vivência com o Movimento dos Sem Terra e de repente, em 2013, eu já me vi imersa nesse universo. Já se vão oito anos que me juntei ao movimento social das Brigadas Populares ,e à luta das Ocupações Urbanas. São muitas histórias, suor, lágrimas, sorrisos e aprendizados nesse tempo de caminhada. 

As ocupações são comunidades onde famílias sem-teto constroem suas casas e vidas, através da tomada de terras que estão abandonadas e sem cumprir sua função social. Esse tipo de movimento foi, na última década, para grande parte da população, a única via de se acessar o direito à moradia e, por isso, seguimos afirmando: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito.

Por se dar às margens do planejamento urbano formal, as ocupações urbanas, por vezes são alvo de críticas, sendo taxadas como um problema ambiental, argumento que acaba sendo utilizado para justificar processos de reintegração de posse – a remoção forçada das pessoas de um determinado território ocupado, muitas vezes feita de maneira violenta. Há, no entanto, grupos e pessoas que legitimam esses espaços não apenas por serem solução de moradia para famílias sem-teto, mas, também, por acreditarem que é possível minimizar e controlar os possíveis impactos ambientais decorrentes do processo de autoprodução precária do espaço. Para mim, essa experiência tem mostrado como é possível olhar para as ocupações também como embriões do que poderia ser uma nova forma de se construir e pensar o espaço urbano.

Foi em um momento de conflito intenso e ameaça de despejo que eu me encontrei com essa esperança de outras cidades possíveis. Era 2014, durante as constantes vigílias que fazíamos na Izidora, ocupação considerada a maior da América Latina, que é composta por três comunidades – Esperança, Vitória e Rosa Leão. As vigílias foram essenciais para evitar as ações de despejo e pressionar o poder público a ouvir e construir possibilidades com as mais de 8 mil famílias lutando por suas casas. 

Participar da vigília nos possibilitou estar no dia a dia daquelas famílias. Eram assembleias, reuniões, atos, manifestações; mas também almoços, festas, brincadeiras com as crianças nas ruas. Muita conversa e partilha. Foi quando Tati, uma amiga e companheira de luta, decidiu, em um desses dias, andar pela ocupação Vitória para tirar fotos dos quintais e conversar com as famílias sobre seus cultivos. Nessa caminhada  encontrou com Adão e Ana, um casal de moradores e agricultores da ocupação que tanto nos ensinaria sobre plantio, cultivo, resistência e coletividade.

Adão e Ana tinha, e ainda tem, um quintal tão diverso que chega a emocionar.  Fazia brotar o verde em meio as casas de alvenaria que começavam a se consolidar ao redor. E assim como Adão, ali havia um monte de gente habilidosa com a terra. Tati me levou para conhecer esses lugares mapeados por ela, uma parte tão potente das ocupações urbanas: os quintais, onde a vida acontecia. 

Lembro do quão impressionada eu fiquei em visitar quintais com mais de 60 tipos de plantas, hortaliças, temperos, legumes, frutas e plantas medicinais, com criação de galinhas e pequenos lagos com tilápias, alémde  plantações abundantes de arroz, feijão e até com cultivo de mel. Tudo ali, confluindo com um processo de resistência da luta pela moradia que por vezes causava tanta dor e cansaço nesses moradores. 

Percebendo a potência desses lugares cultivados, surgiu a ideia de fazermos um evento chamado Encontro dos Agricultores da Ocupação Vitória :A partir do qual teve como desdobramento os mutirões de implementação de uma horta comunitária, o mapeamento dos quintais produtivos e o ciclo de oficinas e mutirões em agroecologia, levando à criação do coletivo Agroecologia na Periferia. 

A partir daí foram diversos projetos de agroecologia desenvolvidos nos últimos anos, tanto na Ocupação Vitória, na região da Izidora, como na Ocupação Tomás Balduíno, em Ribeirão das Neves, uma ocupação localizada na fronteira entre área urbana e rural onde grande maioria  das casas contam com quintais. Tudo isso vem sendo  construído junto às organizações Brigadas Populares e à Rede de Intercâmbio em Tecnologias Alternativas, além de outros ativistas e atores diversos, como grupos de pesquisa-extensão universitários e alguns setores do poder público.


O desenrolar desses trabalhos nessas ocupações gerou inúmeras trocas de saberes e experiências em agroecologia, aplicadas nos quintais dos moradores e também em áreas comunitárias. Além disso, alguns moradores fazem da agricultura hoje seu ofício e comercializam parte de suas produções familiares e coletivas ou comunitárias, em feiras e sistemas alternativos de venda direta de cestas agroecológicas, como a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA)

Atualmente, durante a pandemia do Covid-19, os agricultores e agricultoras têm participado de projetos de segurança alimentar distribuindo parte de suas produções para as próprias famílias das comunidades. Só no segundo semestre do ano passado foram distribuídas 3.000 cestas agroecológicas para famílias que vivem nas proximidades. 

O modo de produção capitalista e o processo de industrialização, além de acarretar em uma produção do espaço urbano marcada pela segregação social e formação das periferias, tem como desdobramento também uma acentuação na visão instrumental da natureza. Ou seja, a natureza é vista como objeto de dominação do ser humano, e em última instância para servir às necessidades do próprio capital. 

É possível ver esse movimento na construção das cidades contemporâneas, nas quais a natureza passa a ser concebida como objeto de proteção e tutela, o que é expresso na constituição das áreas verdes e áreas protegidas. Mas a instituição de um espaço dedicado à natureza acaba sendo muitas vezes entendida como uma maneira de demarcar os limites espaciais da separação sociedade-natureza, fazendo com que a natureza seja tomada como objeto de domesticação. Além disso, aponta para uma contradição, já que ao destinar uma área para proteção, destina-se, consequentemente, toda a área em seu entorno à exploração. 

Acreditamos que as ocupações urbanas, justamente por estarem excluídas do espaço formal, tem potencial para serem embriões do que poderia ser uma nova forma de se construir o espaço urbano. Elas não se encontram limitadas à lógica do lucro acima de tudo, permitindo que seja possível construir, nestes lugares, a cidade que sonhamos, sem precisar estarem padronizadas em certos aspectos da vida urbana. Como diz Milton Santos, geógrafo, escritor, cientista, jornalista, advogado e professor universitário brasileiro,  “a experiência cotidiana da escassez possibilita a descoberta do novo, abre portas para a reinvenção da organização da vida”. 

No caso das duas ocupações que deram vida ao coletivo Agroecologia na Periferia, ambas encontram-se em áreas periféricas, em frentes de expansão da malha urbana e apresentam características urbanas e rurais. Desta forma, observa-se áreas pastoris ou de vegetação nativa, com cursos d’água, nascentes e atividades típicas do ambiente rural, como criações de animais e plantios. Os moradores, junto com apoiadores, constroem ali alternativas para um melhor uso e ocupação do solo como tecnologias para tratamento de águas cinzas e esgoto, organização de sistema autogestionado de coleta de lixo, aumento das áreas verdes e da biodiversidade local. Acompanhar a construção e a existência desses processos é uma oportunidade de aprender com a potência do comum. 



É necessário que busquemos novas formas de construir e viver a cidade, em que seja possível uma reconexão da natureza e da sociedade. A agroecologia e a agricultura urbana podem ser ferramentas para essa reconfiguração do viver urbano, auxiliando na melhoria da sustentabilidade e qualidade de vida nas cidades, por exemplo na promoção de segurança alimentar, melhoria da qualidade do ar e infiltração da água no solo. Essas pessoas que transformam seus quintais em solos férteis são, sem dúvida, agentes dessa construção de um urbano que tenha uma integração com a natureza de forma respeitosa e harmoniosa. 

Vivian Tofanelli é psicóloga e pesquisadora em engenharia de produção, integrante das Brigadas Populares, do Agroecologia na Periferia e da CSA Ora-pro-nóbis.

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