Nós, do Lei.A, trouxemos um conteúdo especial sobre o primeiro sistema tradicional brasileiro a ser reconhecido como Patrimônio Agrícola Mundial
Diamantina/MG sedia, de 14 a 15 de setembro, II Festival das Comunidades Apanhadoras de Sempre-Vivas
Serras do Cipó, do Curral, do Caraça, dos Cristais, de Ouro Branco e Chapada Diamantina são algumas das paisagens naturais conhecidas de mineiros e baianos, além de serem trechos do Complexo do Espinhaço, que mesmo não havendo um consenso científico, é considerada – por uma corrente de geógrafos – como a única cordilheira (conjunto de serras) do território brasileiro.
O Espinhaço é uma formação geológica de 2,5 bilhões de anos e aproximadamente 1.200 quilômetros de extensão. Atravessa Minas Gerais e parte da Bahia, no sentido sul-norte, entre os municípios de Ouro Branco/MG e Xique-Xique/BA.
Com importância geográfica, de divisor de águas, e histórica, nos ciclos econômicos do ouro e diamante, o Espinhaço é lar de espécies dos biomas Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica, e de comunidades tradicionais cuja existência é intrinsecamente entrelaçada a este meio ambiente.
Neste conteúdo especial, nós, do Lei.A, buscamos informações para falar sobre outra preciosidade do Espinhaço, que mistura patrimônios naturais e culturais numa mesma história, pois é no universo do Espinhaço que se encontra o primeiro sistema tradicional do Brasil a pleitear e conquistar o reconhecimento pelo Programa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) como Patrimônio Agrícola Mundial: o sistema dos Apanhadores de Flores Sempre-Vivas.

O título de Patrimônio Agrícola Mundial, atribuído às comunidades com vínculos ancestrais com os territórios em que habitam, abrange aquelas cujas atividades de subsistência moldam e são moldadas por uma paisagem natural única, a nível material e simbólico, com resiliência para tempos de crises climáticas ou políticas e sociais. Essas comunidades são verdadeiros sistemas vivos.

Essa conquista veio após os Apanhadores de Sempre-Vivas se organizarem na Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex) para a produção de um dossiê levado à ONU em 2018.
Com o reconhecimento, é importante destacar também as políticas públicas que vêm sendo adotadas visando a valorização e proteção dessas comunidades, como o importante 1º Festival dos Apanhadores e das Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas, em 2018. A data marcou a entrega oficial do dossiê de candidatura do Sistema dos Apanhadores de Sempre-Vivas ao FAO/ONU, A celebração contou com atividades culturais, lançamento de documentários, oficinas, feiras de produtos artesanais e diversas apresentações culturais.
#conheça
O ofício de Apanhador de Sempre-Vivas
O ofício de Apanhador de Sempre-Vivas é uma prática em que comunidades residentes no Cerrado mineiro, próximas ao Espinhaço, mantêm uma relação íntima com as espécies de plantas, desde seu manejo até sua comercialização. Esta atividade envolve práticas seculares, em que os apanhadores se deslocam para partes da serra, e chegam a deixar suas casas por vários dias para dormir em lapas, que são grutas existentes na serra, ficando mais próximas das áreas onde florescem as sempre-vivas.
A “panha de flores” acontece entre abril e outubro. Nesse processo, os apanhadores realizam o manejo sustentável das espécies visando a sua manutenção. Isso envolve o retorno das sementes para os campos e a limpeza destes por meio de pequenos incêndios controlados. Em certos períodos, os apanhadores levam animais e até fazem pequenos plantios na Serra do Espinhaço, como modo de sobrevivência.

Essa cultura dos Apanhadores de Sempre-Vivas conserva o patrimônio genético e uma agrobiodiversidade muito grande. Ao conservar estes materiais, preservam também o conhecimento do manejo sustentável da terra, além de todos os seus modos de vidas. A conservação da paisagem do Cerrado ocorre de maneira dinâmica, com o uso em harmonia da natureza pelos apanhadores. Este sistema Agrícola Mundial reconhece estas comunidades como “guardiãs da biodiversidade mundial”.
Nós, do Lei.A, fomos entender também como funciona a comercialização das flores apanhadas, que gira em torno de R$ 1 milhão/ano. Esse levantamento é do professor de Agronomia da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, Claudenir Fávero, que faz parte do Grupo de Estudos em Territórios, SócioBiodiversidades e Agriculturas Tradicionais. Esse grupo possui uma relação estreita com as comunidades de apanhadores, há mais de dez anos, junto à Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), com pesquisas de sua cultura e especificidades diversas.

Modo de fazer: uma herança secular
O saber e o fazer envolvidos no ofício de apanhador de Sempre-Vivas é tradição herdada de outras gerações. Um conhecimento secular sobre essas espécies de flores, a região, a geografia do território, as águas, o manejo, usos e valores das espécies. Geram formas sociais de transmissão destes conhecimentos, caracterizando a prática como Patrimônio Cultural.
O “ir aos campos” é ocasião da socialização entre diferentes comunidades de apanhadores, pois lá, famílias diferentes se encontram. Elas praticam festejos, festas religiosas e expressões culturais muito próprias e compartilhadas entre elas. Esses são alguns dos motivos pelos quais se constroem a identidade de apanhadores de Sempre-Vivas e de pertencimento à região do Cerrado mineiro.
“As comunidades contam com uma organização do trabalho, de natureza familiar, para o autossustento, e para a obtenção de renda, por meio da comercialização do que produzem; com códigos de apropriação e uso da terra e recursos envolvidos, em que as relações de parentesco e compadrio são marcantes; e com representações e práticas sociais de interação com a natureza, a qual é vista como criadora da vida e como um todo do qual eles próprios fazem parte”, explica Fernanda Monteiro, estudiosa do ofício.

#monitore
Preservar os campos de Sempre-Vivas: uma luta para além do reconhecimento
Em março de 2022, completou-se dois anos do reconhecimento e título dado pela FAO ao Sistema Tradicional (ST) dos Apanhadores de Flores Sempre Vivas da Serra do Espinhaço como Patrimônio Agrícola Mundial. Ele abrangeu três municípios de Minas Gerais: Diamantina, Buenópolis e Presidente Kubitschek, e seis comunidades, duas delas (Mata dos Crioulos e Vargem do Inhaí) reconhecidas como remanescentes de quilombos. Porém, o número de comunidades reconhecidas ainda é muito distante do total de comunidades que tiram o sustento do ofício, contabilizados em aproximadamente 50 municípios ao todo.
O reconhecimento das comunidades de Apanhadores de Sempre-Vivas enquanto um sistema de agricultura tradicional foi uma vitória alcançada pela mobilização destas comunidades quando se viram ameaçadas em suas práticas, saberes ancestrais e a sua subsistência, assim como seu território.
Porém, algumas dessas ameaças, mesmo com o título, continuam a existir.

Conquistas e avanços
Tatinha apontou alguns reflexos positivos do reconhecimento pela ONU/FAO. O primeiro deles foi a visibilidade que as comunidades ganharam para poderem acessar direitos básicos, como a regularização fundiária, energia elétrica, obras de infraestruturas. “Esse reconhecimento também abriu portas para o diálogo com as três esferas de poder (federal, estadual e municipal). Assim como motivou a elaboração e aprovação de um Plano de Conservação Dinâmico, que estabelece diretrizes para fortalecer o Sistema dos Apanhadores de Sempre-Vivas frente às ameaças ao território e às comunidades”, disse. Ela citou também como avanço a criação do Grupo Executivo Permanente das Comunidades de Apanhadores de Sempre-Vivas, que envolve os governos estaduais e municipais.
Duas políticas públicas foram importantes na implementação nestes dois anos de reconhecimento, que são as políticas institucionais de Alimentos: PNAE (Política Nacional de Alimentação Escolar) e PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). Em uma escala local, muito já foi conquistado até os dias de hoje pelas comunidades, a partir de alguns direitos básicos destas pessoas que habitam os municípios. O reconhecimento trouxe também o interesse por pesquisas e estudos dessa cultura, assim como publicações que divulgam e valorizam esse modo de vida.
Porém muito ainda se tem para trilhar. Atualmente, este ofício está em processo de registro pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha/MG), para ser reconhecido como patrimônio imaterial mineiro. Outro ponto importante citado pelo professor Claudenir é a reivindicação das comunidades pela regulamentação de seus territórios: “Em relação a essa regulamentação pouco se avançou atualmente (…). Nas comunidades de apanhadores que são quilombolas já se iniciou alguns estudos visando a titulação de seus territórios tradicionais. Porém, é um caminho longo a ser percorrido.”

#aja
O II Festival das Comunidades Apanhadoras de Sempre-Vivas
Nos dias 14 e 15 de setembro de 2022 acontece, no Mercado Velho de Diamantina/MG, o 2º Festival das Comunidades de Apanhadores de Sempre-Vivas. Edição que dá continuidade a um encontro que busca o fortalecimento das comunidades por meio da divulgação, exposição e comercialização de seu artesanato, oferta de oficinas, apresentações culturais, exposição de fotografias e exibição de documentários, mostrando um pouco de uma cultura que faz parte da nossa mineiridade.
Neste ano, sob a chamada “Queremos a Serra Sempre, Sempre Viva, A Alma da Serra são os Apanhadores de Flores”, o Festival promete cores, sabores, aromas, saberes e tradições das várias comunidades.

Para além deste importante fortalecimento para a visibilização das comunidades, o 2º Festival espera ser também um local de debate para futuras perspectivas de fortalecimento desses grupos junto ao poder público. Para isso, Gatinha, apanhadora de Sempre-Vivas, ao divulgar o evento nos conta um pouco da composição e organização do evento. “O evento está contando com a presença do poder público nas três esferas, além de uma mesa com representante da FAO/ONU para falar da importância do reconhecimento como Patrimônio Agrícola Mundial. A segunda mesa já vai mais para o caminho das perspectivas futuras. Então assim do como que o poder público tá pensando para que essas comunidades acessem as políticas públicas”, contou.