A aflição dos catadores da coleta seletiva e o descaso do poder público

Suspensão da coleta seletiva e queda no preço de materiais colocam
trabalhadores à porta da indigência

Bolsa Reciclagem, lei aprovada em 2011, está com repasses atrasados

Saiba como você pode ajudar a minimizar os efeitos negativos da pandemia sobre os catadores e catadoras

 

Seguindo orientação do Ministério da Saúde, centenas de prefeituras em todo o Brasil suspenderam o serviço de coleta seletiva como medida de acautelamento contra a Covid-19. Afinal, embalagens de materiais como plástico e papelão são meios de propagação do novo coronavírus.

Para Cido Gonçalves, diretor de projetos do Instituto de Referência em Resíduos (IRR), de Contagem, a medida veio, dada a velocidade da pandemia, “sem nenhum tempo de fazer qualquer trabalho de atendimento, de discussão e de organização do segmento para a constituição de uma alternativa”.

Os catadores estão sentindo na pele os efeitos da pandemia: os galpões estão vazios e o sustento de milhares de famílias caiu a zero. A paralisação do segmento derrubou os preços dos materiais. O quilo de garrafa Pet, por exemplo, foi R$ 1,80 para R$ 0,90 centavos. 

Se não bastasse, o atraso no pagamento da Bolsa Reciclagem (benefício criado para auxiliar os catadores em Minas Gerais) ajudou a criar uma “tempestade perfeita” para os catadores. O Ministério Público entrou no jogo para garantir outras fontes de recursos que possibilitem quitar e normalizar os pagamentos. 

Nós do Lei.A fomos catar respostas sobre como ajudar esses incansáveis e generosos trabalhadores, que limpam a cidade, cuidam da saúde das pessoas e preservam o meio ambiente. Encontramos muitas histórias de dificuldades, mas também de solidariedade e de mobilização.  E trouxemos também dicas de como você pode agir para ajudá-los.

 

#Conheça

Cido Gonçalves, de 61 anos, teve contato com o universo dos catadores de materiais recicláveis no final de 1990, quando foi diretor regional da Cáritas, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja Católica.

Na época, diz ele, os catadores se confundiam com a população de rua, sendo vistos como mendigos ou mesmo marginais. Vinte anos depois, a legislação avançou, foram organizadas associações e cooperativas, e a categoria conquistou o reconhecimento do Estado e o respeito da sociedade. 

“Agora, o que a gente observa no contexto da catação é que a grande maioria dos catadores do país e de Minas Gerais está voltando quase à condição de origem, que é de indigência no contexto urbano”, avalia Cido. Isso se dá pois há duas ‘categorias’ de catadores: os organizados em cooperativas e associações, e os informais ou ‘avulsos’. 

De acordo com dados Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), há algo como 800 mil pessoas trabalhando na catação no Brasil, das quais cerca de 70% estão na informalidade. 

Segundo Cido, houve queda brutal na renda dos catadores organizados, mas ao menos esses trabalhadores puderam ser inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) de programas sociais do Governo Federal, ficando aptos a receber o auxílio emergencial de R$ 600.

Já para os informais, que estão à margem da assistência oficial e sob condições de trabalho degradantes, a combinação de redução do volume de resíduo disponível e de queda no preço tem sido cruel. Segundo pesquisa do Instituto de Referência em Resíduos (IRR), a média de preço do conjunto dos materiais, na região Sudeste, era de 0,91 centavos no fim de outubro de 2019. Hoje, está em 0,45 centavos.

Fonte: Coopert Ltda

 

“Eles têm que produzir praticamente o dobro, para vender pela metade do preço que eles estavam vendendo no final de fevereiro”, diz. 

 

Como os catadores estão se virando?

Filha de sucateiro e catadora desde os sete anos de idade, Maria Madalena Rodrigues Duarte Lima, 59 anos, ajudou a fundar há 22 anos a Cooperativa de Reciclagem e Trabalho (Coopert), no município de Itaúna, na região Centro Oeste de Minas Gerais. Ela também coordena a Rede Cataunidos, de Belo Horizonte.

“A situação dos catadores, mesmo com o auxílio, está muito precária. Há muita dificuldade. Todos se inscreveram, mas não são todos que receberam o auxílio. Toda hora que olha lá (no aplicativo da Caixa) está em análise, mas não tem outra resposta”, diz ela. 

A Rede Catunidos, onde Madalena atua, por exemplo, tem contrato de prestação de serviço da coleta do vidro com 23 bares de BH. “A gente estava vendendo 120 toneladas de vidro por mês. Agora, o galpão está limpinho”, completa. 

O encolhimento da renda é relevante. “O pessoal que estava com renda entre R$ 1,2 mil e R$ 2,6 mil, hoje, depois da quarentena, a gente teve renda de R$ 144, R$ 400 e pouco. O muito que deu, foi R$ 800”.

 

Outras questões pioram o problema, como o custo fixo das cooperativas com impostos, aluguéis e contas de serviços básicos, como água e luz, que seguem chegando.

 “A Cataunidos hoje tem 33 empreendimentos filiados à rede. A estrutura-sede é que traz a sustentabilidade, na base, aos catadores. A gente está passando por momentos muito difíceis mesmo, porque não temos o dinheiro para arcar com as despesas, tem os impostos do caminhão, o IPVA”.

Assim como Cido Gonçalves, Madalena também está preocupada com a situação dos catadores informais. “Como a maioria da população está de quarentena, o povo não está consumindo. Por causa também da crise financeira, muita gente está fazendo suas economias, e quando o cidadão para de consumir, a coleta também cai”, afirma.

 

Qual a situação dos informais nesse momento?

Luiz Henrique da Silva, de 53 anos, é associado da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis de Belo Horizonte (Asmare) e coordenador da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat). 

Segundo ele, o fechamento do comércio atingiu em cheio os catadores avulsos. “Você ficou sem ter nenhum tipo de renda, né? Os catadores do Brasil inteiro. Uma parte conseguiu acessar, graças a Deus, aquele auxilio emergencial do governo, mas a maioria não, principalmente os avulsos”. 


De acordo com Luiz Henrique, o trabalhador ‘avulso’ muitas vezes não tem interesse em se cooperar devido ao custo com despesas fixas e tributos. “A maioria prefere trabalhar por conta própria no depósito. Ele coleta, vende o material e pronto, acabou. Pegou o dinheiro e vai embora para casa, ou para o viaduto. Outro vai para alguma moradia de favor, ou albergue”, relata.

Segundo ele, a Ancat tem conversado com os donos de depósitos para que ofereçam auxílio a seus trabalhadores, como orientações de cuidados com a saúde, instrumentos de proteção individual, além de cestas básicas e kits de higiene. “Nós estamos vivendo um momento de colapso total na economia, onde os preços dos materiais caíram. E aí mesmo os catadores que estão trabalhando ainda, os avulsos, estão tendo dificuldade de ter uma renda legal. A situação é realmente caótica”.   

O que está sendo feito para remediar a condição de vulnerabilidade social desses trabalhadores? Como a sociedade civil pode ajudá-los? Isso veremos adiante. Antes, vamos falar de um direito dos catadores que vem sendo descumprido em Minas Gerais: o pagamento da Bolsa Reciclagem.

 

#Monitore

Pimentel e Zema, cadê a Bolsa Reciclagem?

Instituída pela Lei nº 19.823, de 2011, e regulamentada pelo decreto 45.975, de 2012, a Bolsa Reciclagem é uma política de Estado que prevê incentivo financeiro pela prestação de serviços ambientais, conforme as diretrizes da Política Estadual de Resíduos Sólidos.

Segundo Cido Gonçalves, a Bolsa Reciclagem é uma política pública muito bem construída. De um lado, reconhece formalmente a relevância dos catadores para o meio ambiente. De outro, incentiva os trabalhadores a se organizarem, resultando em maior formalização.

“Desde a implantação do Bolsa Reciclagem, o estado de Minas Gerais tem dados muito mais objetivos em relação a esses danos ambientais evitados através da coleta, triagem e a recolocação dessa mátria prima no mercado”, diz Cido. 

Podem receber o auxílio as associações e cooperativas de catadores cadastradas na Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad) e constituídas há mais de um ano – e com condicionantes inteligentes, como a preservação dos filhos na escola. 

Porém, segundo as associações, a administração anterior, de Fernando Pimentel (PT), ficou praticamente quatro anos sem remunerar as organizações de catadores. Isso gerou um grande passivo de atrasados, que tem sido quitado aos poucos pela atual administração. 

Seriam beneficiadas 3.220 famílias distribuídas por 154 instituições, num total de quase 12 mil pessoas. O valor dos benefícios atrasados é de R$ 6 milhões.

“A gente não quer uma política só no papel, a gente quer uma política de prática, que ela venha, que seja criada, implantada e executada de forma permanente, pois independente do governo, que muda, a gente tem que continuar com os valores e os direitos do trabalho”, disse Madalena Duarte.

No dia 16 de abril, atendendo sugestão do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), o Ministério Público de Minas Gerais oficiou ao governador Romeu Zema (Novo), requerendo que receitas oriundas de multas ambientais sejam destinadas à quitação de parcelas atrasadas da Bolsa Reciclagem.

Ofício do movimento nacional dos Catadores ao MP

No dia 9 de junho, a reportagem de Lei.A procurou o Governo de Minas para saber quantos trabalhadores estão aptos a receber o auxílio, quantas parcelas seguiam em aberto desde a gestão anterior e se havia cronograma de restabelecimento dos pagamentos, mas até o fechamento desse conteúdo não obtivemos resposta.

O MPMG, em conjunto com o Ministério Púbico do Trabalho (MPT), também fez recomendações aos municípios para proteger os catadores durante a pandemia.

Resolução conjunta MPT e MPMG para prefeituras sobre o trabalho dos Catadores na pandemia

 

#Aja

Retomada? Nunca mais será como antes

Segundo Luiz Henrique, da Asmare e da Ancat, várias questões preocupam o segmento, desde a queda no preço dos materiais até as discussões na Câmara dos Deputados sobre tecnologias de incineração de resíduos, a partir de alterações na Lei Nacional de Resíduos Sólidos.

Mas outro ponto causa desconforto: a capacitação dos catadores, principalmente os informais. “Nós vamos ter que preparar mais os catadores para usar os equipamentos de proteção individual (EPIs), máscaras, luvas, e os catadores hoje tem uma dificuldade enorme de usar esse equipamento, mesmo ele tendo condições de ter dentro das cooperativas”, diz.

E completa: “Essa questão com cuidado, do toque, de chegar, de limpar, de higienizar, acho que aos poucos vai virar uma prática, e depois uma cultura. A mudança de cultura é um processo”. 

Já Cido Gonçalves, do IRR, de Contagem, crê que o maior desafio é mobilizar a sociedade civil em defesa dos catadores e da coleta seletiva. “Tenho que assumir uma postura cidadã de cobrar que o Estado, em parceria com o setor privado, assegure o serviço de coleta seletiva, com a inclusão produtiva desse segmento, que há mais de 100 anos presta um serviço relevante, e que na sua grande maioria vive ainda abandonado como se fosse o lixo gerado pelo sociedade”, diz. 

Documento MP Recomedação assinada – limpeza urbana.pdf

Como ajudar os catadores, principalmente os informais, nesse momento difícil?

Como mobilizar a sociedade civil, mesmo com o isolamento, e criar uma grande rede de solidariedade?

Comece fazendo a sua parte. JAMAIS misture equipamentos de proteção contra a Covid-19 no meio da coleta.

Luvas, máscaras e fraldas descartadas devem ser embalados em material impermeável e resistente. Continue separando o lixo. Caso tenha condição de armazenar os recicláveis em casa, espere a coleta seletiva ser retomada.

E colabore com a campanha Solidariedade aos Catadores, promovida pela Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat).

Clique aqui e conheça solidariedadeaoscatadores.com.br.

As doações podem ser feitas por meio de pessoas físicas ou jurídicas, e são convertidas em créditos de R$ 200 em cartão Vale Alimentação. Sua ajuda vai beneficiar pessoas escolhidas por ordem de prioridade, como mães de família, idosos e pessoas com problemas crônicos de saúde.

#Conheça #Monitore #Aja

 

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